Invisível, silenciosa e hereditária, a hipercolesterolemia familiar (HF) é um dos panos de fundo para duas das doenças que mais matam no mundo: Acidente Vascular Cerebral (AVC) e infarto. A condição difere-se da forma mais comum que envolve níveis elevados de gordura no sangue porque é rara, genética e não é possível controlá-la com hábitos saudáveis de vida e alimentação. Subnotificada e pouco conhecida, a patologia está ligada à mortalidade prematura de muitas pessoas ao redor do planeta. 

Uma pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas (UFMG), publicada no fim do ano passado na Scientific Reports - uma das mais conceituadas revistas científicas do mundo - mostrou que a HF afeta aproximadamente 1% dos adultos brasileiros, o que significa que 1 a cada 104 das pessoas adulta apresenta a possibilidade de receber o diagnóstico da condição. O levantamento usou dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 2014 e 2015, em que foi feito o perfil lipídico dos voluntários. 

O estudo, que coletou informações de quase 9 mil indivíduos, revelou que o indicador do Brasil é superior ao de diversos países do mundo, como a França - que tem prevalência de 0,85%, os Estados Unidos - 0,40% -  e a China - 0,30% -.  Os resultados ainda demonstraram que o predomínio de casos de HF foi maior entre mulheres, nos adultos entre 45 e 59 anos, de raça/cor branca, com menor escolaridade e nas pessoas com diabetes, hipertensão e colesterol acima de 310 mg/dL.

“Esse foi o primeiro inquérito que coletou dados de colesterol em adultos brasileiros, com amostra representativa da população. O que a gente percebeu foi que as pessoas que têm essa doença podem ter acometimento desde a infância ou mesmo na fase jovem e adulta. Então, quando se tem um diagnóstico abrangente da condição no país, dá para traçar estratégias de saúde mais direcionadas para esse público específico. A HF é muito grave porque os pacientes que a desenvolvem têm risco aumentado de doença cardiovascular e cerebrovascular,” explica a autora do estudo Ana Carolina Micheletti.

Conforme a pesquisadora, o maior problema da hipercolesterolemia familiar é o fator genético. “Uma vez diagnosticado um caso da doença, a chance de detectar outras pessoas na família é de quase 50% para parentes de primeiro grau, de quase 25% em segundo grau e pode também estar presente nos parentes de terceiro grau. Aliás, essa identificação é um desafio porque muitos países não possuem registros com essas observações. Mas é muito importante reconhecer precocemente a HF porque isso melhora a qualidade de vida dos pacientes e ainda evita a mortalidade pelas complicações dela.”

A cardiologista da Santa Casa BH Patrícia de Sá destaca que a hipercolesterolemia familiar nada mais é do que um problema de mutação de um gene receptor do LDL - o colesterol ruim. “Esse canal não existe nos pacientes que têm HF ou existe numa quantidade muito menor do que numa pessoa em condições esperadas. E aí não tem o captador desse colesterol ruim na corrente sanguínea. Ou seja, o LDL vai se acumulando no sangue de forma que é impossível por meio de formas naturais o corpo eliminar essa gordura.”

Um dos grandes dificultadores para o diagnóstico menos tardio é que, segundo a médica, o paciente já chega ao hospital com um problema mais grave. “Normalmente, a pessoa está sentindo infarto, mal súbito ou angina. Quando é alguém jovem, a gente entende que não são condições normalmente esperadas para esse grupo. Por vezes, quando você vai procurar a causa, encontra níveis de colesterol altíssimos e descobre no histórico familiar, por exemplo, que a mãe daquela pessoa teve um infarto com menos de 40 anos ou que o pai teve morte súbita mal explicada ainda muito jovem. Neste momento começa a desconfiança sobre a possibilidade de HF,” enfatiza 

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Gerações acompanhadas pela HF e suas complicações

Denise Panico, de 49 anos, foi diagnosticada com colesterol alto aos 18 anos. Duas décadas depois, ela soube que tinha hipercolesterolemia familiar (HF). Durante toda a vida, a advogada, que mora em Barueri - na Grande São Paulo - conviveu com as mortes de seus parentes próximos. O primeiro tio infartou aos 30 e poucos anos, ainda na década de 80. Ele pôs lá a ponte de safena e mamária, ganhou sobrevida, mas perdeu a vida pouco tempo depois. “Ele faleceu em setembro de mais ou menos 1985. Em março do outro ano, a mãe dele - que era minha avó - morreu de infarto. No ano seguinte, também em março, o meu avô partiu com a mesma doença, com cerca de 70 anos, que é o limite de vida da minha família.”

O século virou, mas a história seguiu se repetindo. Por volta de 2008, outro tio de Denise- o mais velho - sofreu um infarto aos 50 anos, foi safenado e ainda viveu por mais uma década. Em 2010, a mãe da advogada também teve um ataque cardíaco, fez a cirurgia para revascularização do miocárdio, mas faleceu em 2022. “Quando fui dar a notícia da morte ao irmão dela, ele também infartou. Em fevereiro do ano passado, perdi o meu tio mais novo - que já havia tido muitos muitos AVCs e faleceu aos 60 anos. Recentemente, há pouco mais de um mês, a irmã da minha mãe também infartou,” conclui Denise ao contabilizar as perdas. 

Segundo a advogada, quando as pessoas perguntavam aos membros da família sobre as causas das mortes, a resposta era a mesma: “ah, morreu do coração.” No entanto, essa explicação começou a mudar quando em 2008 Denise descobriu o programa Hipercol Brasil, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor), que faz testes genéticos para identificar pacientes com HF. Nessa época, ela já fazia tratamento com estatina - remédio indicado para baixar o colesterol ruim (LDL), o colesterol total e os triglicerídeos no sangue.

“Fiz o exame e deu alteração genética para HF. Aí, eles falaram que precisavam testar meus ascendentes e descendentes. Minha mãe e minha filha, então com dois anos, também deram positivo. Depois fomos para as laterais para verificar meus irmãos. Os dois também apresentaram a doença. Em seguida, constataram a mesma condição em alguns tios e primos. No total, somos umas 13 pessoas da família diagnosticadas com HF,” arremata. 

Para Denise, é preciso muita atenção para saber reconhecer os sinais da  hipercolesterolemia familiar. “É uma doença silenciosa, que não dói. Você não vê igual o diabetes, por exemplo. Então vai levando. Mas ela está ali, enchendo a sua coronária de plaquinha e quando menos se espera, para de vez. Por isso, acho importante que as pessoas façam o check up e exames anuais. Vá conferir e testar, porque às vezes quando se descobre é tarde demais,” finaliza. 

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Testes genéticos são feitos no laboratório do InCor, em SP - Foto: Divulgação/ Hipercol Brasil

Rastreamento x expectativa de vida 

A cada semestre, Denise e seus familiares vão ao laboratório do InCor, em São Paulo, para fazer exames e consultas. Todos fizeram o teste genético por meio do Hipercol Brasil. O programa surgiu há 12 anos e tem como objetivo identificar indivíduos com hipercolesterolemia familiar (LDL maior que 230 mg/dL) por sistema de rastreamento de gene em cascata. No total, cerca de 7 mil pessoas foram analisadas desde o início do projeto. Os pacientes são encaminhados pelo Incor ou por outros centros de saúde. 

“Os testes são feitos gratuitamente por meio de um painel genético, que detecta nove genes  correlacionados a hipercolesterolemia. Quando encontra uma alteração em um indivíduo, é feito o exame nos outros parentes. Já tivemos casos de identificar de 100 a 200 pessoas com a doença numa mesma família. É muito importante fazer esse rastreamento porque se uma criança identificada com HF, por exemplo, começa a tomar estatina desde cedo, a expectativa de vida dela é igual a de uma pessoa sem a condição. Mas o Hipercol é o único programa deste tipo no Brasil. Por isso, é necessário ampliar o acesso aos testes pelo SUS,” enfatiza a coordenadora do Hipercol Brasil, Cinthia Elim Jannes. 

Razão de 60% dos casos de AVC isquêmico 

Um estudo publicado em setembro deste ano na revista científica The Lancet Neurology revelou que o número de pessoas que tiveram acidente vascular cerebral (AVC) no mundo aumentou 70% em 30 anos. A pesquisa, que analisou dados entre 1990 e 2021, ainda apontou que a condição foi a terceira maior causa de mortes em todo o mundo, atrás da doença arterial coronariana e da Covid. Também destacou que a contribuição das altas temperaturas ambientais para a piora na saúde e para as mortes precoces por AVC subiu em 72% desde 1990.

“Existe um aumento de incidência da doença de uma forma geral em razão do envelhecimento da população. Entre os mais jovens, há uma alta de casos de AVC isquêmico, justamente por causa dos fatores de risco externos que podem se apresentar mais nessa faixa etária, como sedentarismo, acesso a alimentação inadequada e ultraprocessada, dentre outras coisas,” explica a coordenadora do Departamento Científico de Doenças Cerebrovasculares, Neurologia Intervencionista e Terapia Intensiva em Neurologia da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), Maramélia Araújo de Miranda Alves. 

A especialista explica que dos tipos de AVC, o isquêmico é o que tem correlação mais estreita com a hipercolesterolemia familiar (HF). “Cerca de 60% dos casos têm ligação direta com a aterosclerose - placas de gordura nas artérias que irrigam o cérebro - que é uma consequência da hipercolesterolemia familiar. O restante das ocorrências são do tipo cardioembólico, decorrente de doenças do coração, e de outros menos comuns. Quando o paciente tem o problema, tem que correr imediatamente para um hospital capacitado,” realça. 

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20 vezes mais risco de infarto 

A Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede) afirma que a cada minuto, um paciente dá entrada em um pronto-socorro do Sistema Único de Saúde (SUS) com crises agudas causadas por doenças que afetam o coração, como a insuficiência cardíaca e o infarto agudo do miocárdio. Só em 2023, foram 641.980 internações decorrentes desse tipo de quadro. 

Conforme o professor assistente da Universidade Federal de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) Henrique Tria Bianco, embora o infarto seja mais comum na população idosa, certos comportamentos e condições podem predispor os jovens a essa condição. 

“Doenças autoimunes e genéticas, como hipercolesterolemia familiar (HF), também podem aumentar as chances de infarto em pessoas jovens. Estudos têm demonstrado que pacientes com HF heterozigótica, que é a forma mais comum, podem ter risco de ataque cardíaco até 20 vezes maior, enquanto aqueles com a forma homozigótica, mais rara e severa, podem sofrer infarto ainda mais precocemente, muitas vezes na infância ou adolescência. Por isso, a identificação precoce e o tratamento agressivo da HF, incluindo mudanças no estilo de vida e terapia medicamentosa, são cruciais para reduzir a possibilidade de eventos cardíacos e outras complicações cardiovasculares.

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