SÃO VENDELINO (RS). “Passou rentinho, rentinho. Eu vi a morte passando beirando de mim, eu deitado. Por Deus do céu. Eu não sei como pôde acontecer uma coisa daquela.” É assim que Carlos Roberto Mendes, de 57 anos, guarda na memória o deslizamento de terra no km 38 da ERS-122, na cidade de São Vendelino, a cerca de 100 km de Porto Alegre.

Era tarde de 30 de abril. Aquele dia foi um dos primeiros de chuva no Rio Grande do Sul e o início de uma tragédia sem precedentes que parou o país. Desde então, o cenário em diversas partes do Estado é de destruição total, além de uma população inteira marcada pela catástrofe. 

Carlos morava em uma casa alugada no trecho do morro afetado pela força da água. O deslizamento ocorreu por volta de 17h30. Ele tinha subido para o local pouco antes. Das poucas moradias que não foram terra abaixo, uma era a dele. “Só Deus sabe explicar por que defendeu só aquilo ali.”   

Além de ser torturado com a lembrança persistente do momento, Carlos tem convivido com outra tão dolorosa quanto. Mesmo que a última coisa que possa ser considerada em relação a um desastre em que a natureza se enfureceu seja a culpa, ele se questiona se poderia ter salvado a vida de um amigo.

Ele era amigo de José Adair Oliveira, de 47 anos. O homem e o filho dele, Wagner Oliveira, de 22 anos, morreram por conta do deslizamento de terra junto ao km 38 da ERS-122. Imagens do momento mostram um verdadeiro tsunami de terra descendo pelo morro.  

Pai e filho já tinham descido do local antes do desastre, mas decidiram retornar. Alguns dizem que eles foram tentar salvar bens das chuvas e alimentar animais que cuidavam, enquanto outros lembram que os dois foram alertar vizinhos sobre o perigo iminente e não conseguiram sair a tempo. A dor de Carlos é por ter subido ao local pouco antes com o amigo.  

“Eu perdi o meu amigo, que estava sempre junto comigo. Ele subiu conversando comigo ainda, papo vai, a gente conversando. Para morrer, só basta estar vivo. Nós conversamos ainda, cara. Eu falei ‘dinheiro não compra nada, a vida da pessoa quem manda é Deus’. E o cara foi junto comigo para morrer, cara”, relata. 

“Parece que eu tenho culpa daquilo. Se eu não tivesse subido lá em cima, ele não ia subir junto comigo. Eu penso assim comigo: ele tinha voltado dali. Estavam os dois conversando comigo. Foi quando o pai foi tratar dos bichos e demorou, o filho saiu atrás, foi quando desmoronou e pegou o filho também ali na entrada. Pelo amor de Deus. Isso é uma tragédia que só Deus sabe me explicar.”    

Ainda com a fala e os gestos de quem está desesperado pela situação, Carlos lembra que foi Adair quem percebeu o risco primeiro: “Depois que eu cheguei lá, ele falou ‘desmoronou um pouco aqui, olha aí como está’. Eu tive que arriscar ficar em casa para pegar um salva-vidas no outro dia cedo. Do jeito que estava lá, eu não saio”.  

“No outro dia eu falei de novo ‘seja tudo o que Deus queria’, quando eu vi os postes todos caídos, a luz desligada dentro de casa, a fiação no meio daquele barro. 'Eu vou ter que pegar o rumo da minha estrada’. Saí só com a roupa do corpo”, detalha.  

'Como é que eu vou viver?', questiona Carlos sobre recomeço financeiro

Além de seguir a vida com esse sentimento, Carlos Roberto enfrenta um drama que não consegue deixar de se preocupar. Assim como milhões de outros gaúchos, o recomeço financeiro será um dos mais difíceis. Sem poder trabalhar de carteira assinada e beneficiário de auxílio social, ele recebe R$ 980 por mês e mais o pouco que ganha fazendo bicos.  

Na casa em cima do morro, pagava R$ 400 de aluguel. Depois do deslizamento, conseguiu outro lugar a R$ 600, com um colchão para dormir, além de água e comida: “É agradecer a Deus que eu consegui um lugar ainda. Mas não é como o canto da gente”, diz. A sobra, de R$ 380, não fecha para que se tenha o mínimo de dignidade, especialmente em um recomeço.  

“Esse mês eu paguei R$ 1.000 de aluguel. Duas vezes eu tive que pagar, porque eu aluguei de novo. Eu fiz um empréstimo no banco pra depois descontar do meu benefício.” Com os olhos marejados e a fala descompassada, ele questiona a si mesmo como irá sobreviver daqui pra frente.

“Como é que eu vou viver? Como pagar R$ 600? Eu vou sobreviver de quê? Eu tenho que comer, eu tenho que beber. As coisas são complicadas. Graças a Deus eu tenho tantos amigos sempre me ajudando. Sei lá...”, conta, sem conseguir segurar o choro pela situação injusta que a vida impôs.