Responsável por cuidar da interrupção da gravidez da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio, em São Mateus, no Espírito Santo, o médico obstetra Olímpio Barbosa de Moraes Filho afirma que jamais viu tantas cenas de ódio como as que ocorreram no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife (PE), onde atua como diretor clínico e realizou o procedimento na última segunda-feira (17)
O médico, que já foi duas vezes excomungado pela Diocese de Pernambuco e virou uma das referências sobre o tema, afirmou, em entrevistas concedidas logo após o procedimento, que ficou assustado por ter sido chamado de “assassino” (assim como a “garota”) e que ficou triste ao ver pessoas gritando em frente ao hospital.
Em entrevista ao BandNews, o profissional comentou que sua reação aos movimentos “foi de tristeza”. “Pessoas que defendem a vida chamando a criança de ‘assassina’, querendo fazer justiça dessa forma, logo em uma maternidade que acolhe mulheres em risco, fazendo barulho em um hospital com 104 mulheres internadas. Nunca passei por nada parecido”, declarou o médico à rede de televisão.
À “Veja”, Olímpio completou lamentando o impacto do discurso de ódio político em uma decisão tão sensível como a interrupção da gravidez de uma menina que foi estuprada por um tio. “Fui cercado por pessoas que me chamavam de ‘assassino’ e à maternidade de ‘lugar do demônio’. Chamaram a menina de ‘assassina’ também, mas felizmente ela não ouviu nada; o procedimento era feito enquanto eu sofria os ataques. Nunca tinha visto algo parecido nesses anos todos, é reflexo da força politico-partidária que os movimentos religiosos têm tido ultimamente”, diz.
Na mesma conversa, o médico, que cumpria uma decisão judicial, lamentou esse tipo de pensamento. “Se nós não fizéssemos nada, o Estado brasileiro estaria conivente com a dor e a violência. O mais importante é que ela não queria, foi torturada. Obrigar uma criança a ter uma gravidez forçada é um absurdo”, observou.
Nas redes sociais, ele foi alvo de ataques, principalmente motivados após a divulgação de um vídeo da extremista Sara Giromini, que divulgou seu nome, rosto e convocou seus seguidores para agir contra a ação do médico.
Histórico de luta
Olímpio já está acostumado com os xingamentos e as maldições que lhe são lançados. A primeira vez que se viu em meio a uma polêmica relacionada ao assunto foi em 2006, quando foi excomungado pela Diocese de Pernambuco por ser um dos líderes da campanha de controle de natalidade da Secretaria de Saúde local durante o Carnaval de 2006. À época, o governo passou a distribuir a chamada “pílula do dia seguinte” gratuitamente para a população. O método contraceptivo é condenado pelo cristianismo.
Posteriormente, em 2009, permitiu que uma garota de 9 anos, grávida de gêmeos após ter sido estuprada, tivesse a gravidez interrompida no Cisam. O procedimento contou com uma operação conjunta com policiais para conter a fúria dos religiosos, que condenavam a ação. Vale lembrar que o local, que é ligado à Universidade Federal de Pernambuco, foi o segundo hospital do país a ser autorizado a promover abortos legais, em 1996.
Discurso na Câmara
Seu engajamento no tema fez com que fosse convidado a participar de uma audiência na Câmara dos Deputados, convocada pela Comissão de Defesa da Mulher, em 2017. À época, Olímpio afirmou que tratar o tema de forma marginalizada só faz com que mais mulheres percam sua vida.
“Eu acompanhei com atenção a discussão da matéria. Os dados de abortamento não são muito confiáveis, porque se trata de uma prática que é crime. Por isso, temos dificuldade de verificá-los. Se essas mulheres tivessem nascido em países que respeitam os direitos humanos, em democracias, como é praticamente toda a Europa – Inglaterra, Alemanha, Itália, Portugal, Espanha –, a América do Norte – Canadá, Estados Unidos –, o Japão e a Austrália, a morte delas seria evitável. Essas jovens mulheres perderam suas vidas devido a uma lei que criminaliza o aborto e que não é efetiva, que não evita […] nem diminui o número de abortamento, além de causar a morte dessas mulheres. Há um número muito grande de mulheres que, embora não morram, quase morrem, são internadas na UTI do SUS”, afirmou Olímpio à época.
Segundo o médico, o aborto é praticado corriqueiramente no Brasil, só não é legalizado. E sua prática marginalizada só traz mais mortes e custos aos SUS.
“O abortamento clandestino é responsável pelo segundo maior gasto na área da obstetrícia, perdendo apenas para o parto. Esse custo para o SUS poderia ser diminuído se o abortamento fosse legalizado. O abortamento passaria a ser seguro, e o abortamento seguro é menos arriscado que o parto vaginal. Se realizado em condições ideais, por médicos, em hospitais ou clínicas, a possibilidade de complicação é praticamente nula. Com isso, o que se gasta no SUS diminuiria”, completa.
Por fim, Olímpio lamenta a falta de representatividade feminina na discussão, principalmente as mais pobres, que são as mais impactadas pela legislação.
“Essas mulheres que morrem não estão representadas na reunião de hoje. São as mulheres pobres, são as mulheres negras, são as mulheres do Sertão de Pernambuco, são as mulheres que não têm acesso à educação. Essas mulheres não estão representadas no Congresso. Se morresse por causa de um aborto a filha de um deputado ou de um médico ou de quem está sentado aí, as coisas estariam diferentes. Estamos aqui discutindo se é pequeno ou não o número de mulheres que morrem. Se essa morte, que pode ser evitada, fosse de uma familiar, de uma filha, muitos pensariam de modo diferente. Mas é uma coisa muito distante. Muitas pessoas que falam aí no Congresso e decidem as leis não têm contato com o mundo real, com o sofrimento dessas mulheres. Eu espero que o país evolua, que a gravidez passe a ser um direito, e não um dever. O índice de gravidez indesejada é muito alto. Temos que trabalhar nisso”, completou.