Ensino

Djamila Ribeiro: 'Aliadas são pessoas brancas que pensam em si criticamente'

Em entrevista a O TEMPO, escritora premiada e mestre em filosofia política discute educação antirracista


Publicado em 17 de julho de 2023 | 06:00
 
 
 
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Em um dos episódios de seu podcast “Mano a Mano”, Mano Brown reflete que a “a história explica tudo”. Para a escritora e mestre em filosofia política Djamila Ribeiro — que já foi uma das entrevistadas pelo rapper —, relembrar o que passou também é uma ponte fundamental para interpretar o presente. Entender a linha que liga os quatro séculos de escravidão no Brasil ao racismo e ao empobrecimento da população negra no país, por exemplo, é uma das bases do que ela entende como educação antirracista.

Em julho deste ano, Djamila chega a Belo Horizonte para a 1ª Bienal de Novos Saberes, a Eduko, evento para educadores promovido pelo Sesc. Ela própria já foi professora no ensino público e apresentará uma série de práticas e exemplos de educação antirracista. Na bagagem, tem seus quatro livros: “Lugar de Fala”, “Quem tem Medo do Feminismo Negro?”, “Pequeno Manual Antirracista” e “Cartas para a Minha Avó”.

Em entrevista exclusiva a O TEMPO, ela reflete sobre como o antirracismo pode ser levado para a sala de aula e quem são, de fato, aliados dessa causa. No vídeo abaixo, você confere o bate-papo completo e, a seguir, uma seleção dos melhores trechos:

Quero começar nossa conversa com um exercício de imaginação, transportá-la para os anos 80 e 90, para a sua infância e adolescência na escola em Santos (SP). Hoje, a estudante Djamila seria mais feliz com a educação e com as escolas que temos no Brasil ou, pelo contrário, enfrentaria mais dificuldades e desafios?  

Acredito que dá para responder isso por duas perspectivas. Talvez sim e talvez não, porque cada tempo histórico tem os seus desafios. Atualmente, sem dúvida nenhuma, por conta das lutas dos movimentos sociais, dos movimentos negros, temos um avanço no debate de uma educação antirracista. A lei 10.639, de 2003, que altera as diretrizes de bases da educação para incluir a obrigatoriedade do ensino da história africana e afrobrasileira nas escolas, é um avanço inegável. A partir dessa lei, temos uma mudança significativa na formulação dos livros didáticos e dos temas que as escolas precisam abordar. Claro que, por ser uma lei que não prevê sanção, infelizmente ficamos muito à mercê da vontade política de quem está no poder naquele momento. Mas é inegável que foi um avanço e, hoje, vemos as escolas debatendo muito mais esses temas. Então, nesse sentido, eu estaria muito mais feliz [na escola hoje]. 

Por outro lado, também passamos por um momento de retrocesso. Eu já fui professora da rede pública e era muito difícil debater gênero nas escolas. Também há muita desinformação sobre isso, e sofremos, hoje no Brasil, muita resistência em relação a esses temas.

Sempre há avanços e retrocessos, mas, sem dúvida nenhuma, é inegável que a educação antirracista está mais presente nas escolas hoje. Eu tenho uma filha de 18 anos e, olhando como mãe, vejo que a experiência escolar dela foi muito diferente da minha. Ela passou por muitos problemas, mas foi uma criança e adolescente muito mais feliz do que eu, na minha época, graças a esses avanços fundamentais sobre a educação antirracista.

A negritude é “autodeclaratória”, e a pessoa precisa entender as marcas associadas ao racismo no Brasil para conseguir se declarar negra. Vemos muitas pessoas que, adultas, começam a se entender como negras depois de refletir durante muito tempo. Se tivéssemos uma educação com mais reflexões, que trouxesse mais esse tema, poderíamos ver um Brasil até com mais negros do que o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra, por exemplo? Há muitas pessoas que ainda não conseguiram se entender negras por falta de uma consciência, de uma educação?

Com certeza. Infelizmente, durante muito tempo, o Brasil foi um país que negou a existência do racismo e a romantizou, a partir do mito da democracia racial. Então, muitas gerações de pessoas negras só foram se entender como negras muito mais tarde, justamente por conta disso. Nas escolas, o ensino era a partir dessa perspectiva de romantização das relações raciais no Brasil. Isso dificultou demais o entendimento mais profundo sobre essa questão no país, o entendimento de que se trata de um problema estrutural. 

Isso dificultou que as pessoas negras e brancas tivessem consciência. As pessoas brancas também são ensinadas a partir dessa perspectiva e reproduzem essa ideia equivocada de negritude. A educação antirracista é fundamental para a sociedade como um todo, tanto para as pesoaos negras se entenderem como negras, entenderem esse debate criticamente, quanto para as pessoas brancas. Discutir raça também é discutir a partir da branquitude.

E essa negligência do Estado brasileiro em debater esses temas como deveria fez também com que as pessoas brancas acreditassem que elas não faziam parte do problema, que debater a questão racial era só debater a partir da perspectiva da negritude e, mesmo assim, de uma perspectiva equivocada. Isso fez com que as pessoas brancas não entendessem que vivemos em relações raciais e que, se há um grupo sendo discriminado, há um grupo que discrimina. Fez com que as pessoas brancas naturalizassem os lugares que ocupam no Brasil. O mito da democracia racial e a falta de uma educação antirracista critica no Brasil durante mutito tempo dificultaram o debate racial para a sociedade brasileira como um todo.

Djamila Ribeiro conversou com O TEMPO sobre educação antirracista

Hoje, pensando no conteúdo das escolas, o que falta debater sobre escravidão? Na minha educação, quando eu era criança, por exemplo, esse era um tema passado como um fato histórico, sem muita reflexão sobre o porquê de aquilo ser tão absurdo, do porquê de aquilo ter continuado ocorrendo por tantos séculos. Que pontos são mais importantes debater nas escolas para criar essa consciência em pessoas negras, brancas, nos brasileiros como um todo?

O ponto crucial é não romantizar a escravidão e as pessoas entenderem que ela não é algo que está lá no passado. A escravidão estrutura o racismo no Brasil. Durante quase quatro séculos, ela foi a base da economia no país. É isso que explica o fato de a população negra no Brasil ser, até hoje, a mais empobrecida. E é justamente por isso que não podemos discutir classe no Brasil sem discutir raça, uma vez que a escravidão transforma pessoas em produtos, em mercadorias, e essas pessoas são forçadas a construir as riquezas deste país sem ter acesso a elas.

No período pós-abolição, não se cria nenhum tipo de medida de reparação à população negra. O país foi o último das Américas a abolir a escravidão, e isso trouxe consequências profundas, no sentido de criação e manutenção de desigualdades. No pós-abolição, o Estado brasileiro não se responsabiliza em enfrentar essas desigualdades que foram criadas na época da escravidão. Quando a Lei Áurea é sancionada, não vem acompanhada por medidas de reparação. A população se vê livre, teoricamente, mas, concretamente, sem nenhum tipo de oportunidade. É quando começam os processos de favelização, e as mulheres negras saem da condição de escravizadas para trabalhadoras domésticas.

Se as pessoas não entendem a escravidão como elemento estruturante de desigualdade, acabam a romantizando e acreditando que basta querer, que, se a pessoa quiser, ela consegue acessar determinados espaços. Isso responsabiliza o indivíduo a refletir criticamente sobre essa estrutura que não confere oportunidades iguais. Durante quase quatro séculos, a população negra no Brasil foi escravizada e, depois, não teve oportunidades concretas de se integrar à sociedade brasileira como cidadã. Entender a escravidão pela perspectiva crítica é fundamnatral para compreender o Brasil. Sem isso, não conseguimos entendê-lo.

Falta, nas escolas e na população em geral, esse fio que liga o período da escravidão ao hoje? Falta essa conexão lógica de que um levou ao outro, de que um aprofundou o outro?

Avançamos, sem dúvida nenhuma, mas ainda precisamos resolver anos e anos em que esse debate não foi feito nas escolas. Como [o líder e pensador indígena] Ailton Krenak diz, a memória é a consciência crítica. Sem essa memória, as pessoas não conseguem ter consciência crítica e, durante muito tempo, isso foi negado a elas. Gerações e gerações foram formadas a partir de uma ideia absolutamente equivocada do que foi a escravidão, do que foi o racismo. Falta aprofundar.

A memória tem um papel fundamental nisso, porque produz essa consciência crítica para as pessoas entenderem o Brasil, entenderem por que ele é como é. Até hoje, existem pessoas que negam a existência de violências contra determinados povos. Há pessoas no Brasil, hoje, que ainda glorificam a ditadura militar. Quando vamos à África do Sul, há o Museu do Apartheid e lá tem tudo o que aconteceu. É importante que isso seja mantido para não ser repetido. Como dizem muito intelectuais que estudam o Holocausto, por exemplo, como [a filósofa política alemã] Hannah Arendt, para que algo não seja repetido precisa ser lembrado. Precisamos nos envergonhar mesmo dessas histórias para que elas não se repitam e para que as futuras gerações consigam olhar para isso de maneira crítica.

Falta entender também o horror que foi a escravidão e como ele tem ecos? Às vezes, pelo menos na escola, parece que a história é ensinada de forma um pouco clínica, sem emoção, e não se fala do pesadelo que foi a escravidão para gerações. Falta um elemento até emocional no ensino? Os professores podem levar esse elemento à sala de aula?

É importante trazer o quanto essas opressões, essas violências contra a humanidade, produziram de dores e traumas. É fundamental que isso seja dito. Nada mais é do que reproduzir a verdade. Imagine o que é você ter, na época da escravidão, filhos e filhas que seriam vendidos, famílias separadas. Qual é a dor dessa mãe? Ou a do homem negro escravizado que era considerado reprodutor e tinha que estuprar as mulheres negras para gerar mais mão de obra? Imagine o que é a dor das mulheres negras que foram estupradas pelos senhores de engenho e não eram sequer dignas de qualquer tipo de humanidade. Isso precisa ser dito porque, na verdade, foi o que aconteceu. Às vezes, as pessoas falam que não querem ver isso, porque é muito doloroso, mas temos que ver, porque foi exatamente o que aconteceu.

Quando negamos essa parte da história, estamos negando a história. Muitas pessoas dizem que isso é criar comoção e fazer determinado grupo parecer terrível. Mas não, foi o que aconteceu. É importante que a gente tenha acesso a isso para entender quais são as consequências dessas opressões, quais são os traumas e as dores que elas causam. Isso é tão somente falar das consequências desses atos terríveis que ocorreram na nossa história para que não banalizemos o mal, como dizia Hannah Arendt. Ou há banalização do mal e as pessoas dizem “Ah isso aconteceu”, e pronto. Para que o mal não seja banalizado, precisamos contar a história em toda a sua profundidade.

Na luta LGTQIAPN+, falamos muito do papel dos aliados, pessoas que não pertencem à comunidade, mas que a apoiam de alguma forma. Para a luta antirracista, quem são os aliados de fato?

Podem ser consideradas aliadas as pessoas brancas que pensam em si criticamente a partir do seu lugar de pessoas brancas, que entendem a responsabilidade de transformar a sociedade da qual fazem parte e que de fato constroem, na prática, medidas e mecanismos para que possamos caminhar em direção ao enfrentamento ao racismo.

São educaodres que revisam as suas bibliografias, por exemplo, e trazem autores negros e negras. E não trazem autores negros e negras que falam necessariamente da questão racial. Isso também é importante. Os educadores podem trazer, por exemplo, Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus para a sua aula de literatura para não reforçar a ideia de uma literatura branca e masculina.

Pessoas negras debatem sobre vários outros temas e são especialistas em várias outras questões. É muito importante quebrar esse imaginário racista no nosso país. Os educadores podem trazer uma cientista, uma biomédica, por exemplo, na aula de biologia, e que está falando especificamente daquele tema e não da questão racial. Isso também é uma forma de ser aliado. Porque, senão, acaba se acreditando que só podemos falar da questão racial nessa perspectiva, quando podemos falar em diversas outras.

Um aliado e uma aliada é uma pessoa que entende esse processo, que entende que é um caminho, que entende que não é fácil e que entende a empatia como uma construção intelectual e política. Não acredito que a empatia é se colocar no lugar do outro. Eu nunca saberei o que é ter medo de apresentar a pessoa que eu amo para a minha família ou andar de mão dada com a pessoa na rua, porque sou uma mulher heterossexual. Eu não sei o que é ter medo de ser expulsa de casa por apresentar a pessoa que eu amo. Agora, do meu lugar social, de uma mulher heterossexual, eu posso e devo refletir criticamente sobre isso. Eu posso ler sobre a questão LGBTQIAPN+, posso entender o que é a dificuldade de homens gays e mulheres lésbicas em se relacionar, quais são os entraves que ainda existem. E, então, trazer isso para a minha bibliografia. Como coordenadora de um livro, posso publicar sobre isso. Posso criar um programa na minha empresa e contratar.

O aliado precisa se entender criticamente e estudar, construir-se intelectualmente, saber escutar os outros grupos para que isso possa impactar na sua prática diária, na sua prática política.

A senhora falou sobre a importância de trazer pessoas negras e LGBTQIAPN+, por exemplo, para o dia a dia. Falamos muito de representatividade no cinema, na literatura, na arte, principalmente. Mas qual é a importância da representatividade no nosso dia a dia? De as crianças, os estudantes, verem que existem pessoas diversas fazendo coisas diversas?

Isso é muito importante porque rompe com o imaginário que vem desses lugares de opressão que colocam negros e negras, mulheres e LGBTQIAPN+ como “os outros”. O paradigma intelectual, moral e político é o homem branco heterossexual. Chegamos na escola e quem é colocado como o sujeito que desbrava o mundo, que criou coisas incríveis, que elaborou filosoficamente? São sempre eles. Mas, quando olhamos a história, por exemplo, vemos que Olympe de Gouges, em 1791, já tinha escrito a declaração dos direitos das mulheres e da cidadã para contrapor ao contrato social de Rousseau. Mas eu não aprendi sobre Olympe de Gouges na faculdade de filosofia. São vozes que foram invisibilizadas.

É importante trazer essas mulheres, se não acreditamos que somente um grupo pensou o mundo e fez coisas incríveis. As crianças brancas acabam naturalizando essa ideia, e as crianças negras acabam sofrendo com uma série de problemas de autoestima, o que afeta o aprendizado. Elas acreditam que seu grupo social é inferior, quando, na verdade, esse grupo é inferior no sentido social, porque as opressões o colocaram em um lugar de menos oportunidade, e não porque é inferior intelectualmente ou politicamente. É fundamental que sejam apresentadas outras possibilidades de existência a partir de uma perspectiva de humanidade para quebrar esse imaginário que exclui e, assim, poder naturalizar a presença de mulheres negras em determinados espaços, por exemplo. Aí, essas crianças talvez não as vejam com surpresa e vejam pessoas LGBTQIAPN+ em determinado espaço sem surpresa nenhuma. 

Essa presença, na verdade, é proporcional. A representatividade precisa vir com isso. Não é só botar uma pessoa. A gente precisa que essa representatividade esteja de acordo com a nossa própria sociedade. Quando falamos de diversidade, não estamos falando de colocar pessoas diferentes juntas, mas tão somente falando em reproduzir o que já está presente na sociedade. As mulheres são a maioria da população, a população negra é a maioria da população. Mulheres negras representam 28% da população e são o maior grupo demográfico do país. Por que isso não é representado proporcionalmente nos espaços, na política, nas escolas, na academia? É tão somente isso. A representatividade é importante porque possibilita outros imaginários e outras existências. Ela quebra com esse imaginário racista, machista, LGBTfóbico.

Começamos a nossa conversa com um exercício de imaginação e quero terminá-la com outro. Pensamos como seria a estudante Djamila nas escolas de hoje. A senhora falou que sua filha teve uma infância e uma adolescência mais felizes na escola do que você. Pelo que a senhora vê no cenário do Brasil hoje, como será essa educação para os seus netos? Existe espaço para um ambiente melhor, no rumo em que temos caminhado?

Há espaço para ser melhor se nos comprometemos com essa melhora. Precisamos nos comprometer com essa mudança e continuar trabalhando nessa perspectiva de uma educação crítica. Precisamos continuar trabalhando para legitimar projetos que de fato vão contribuir para isso. A mudança ocorre se trabalhamos por ela, se seguimos trabalhando por ela. Claro que não é fácil, mas nunca foi para quem nos antecedeu. Aqueles que nos antecederam também tiveram que lutar para que pudéssemos estar aqui hoje.

Muitos dos que me antecederam e que lutaram por uma educação antirracista não vivenciaram isso, mas minha geração vivencia, de alguma maneira. Precisamos nunca perder a perspectiva histórica, ou desanimamos. Todo tempo histórico tem seus desafios e as mudanças só vão ocorrer para as próximas gerações se, de fato, nos comprometermos e trabalharmos por elas. Não é fácil, mas precisamos seguir arregaçando as mangas e trabalhando por aquilo em que acreditamos.

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