O autoexílio em função de ameaças não ocorre apenas com o agora ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL), que renunciou ao novo mandato e deixou o Brasil. A antropóloga e pesquisadora Débora Diniz sofreu ameaças de morte devido à militância nas questões de gênero. Incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal, ela vive hoje fora do país.
Outros brasileiros das mais diferentes idades, profissões e regiões também estão deixando o país, principalmente em direção à Europa e aos Estados Unidos, para sobreviver. Todos eles – ligados a minorias e temas considerados tabus pela sociedade – são vítimas de ataques violentos na internet e fora dela. O medo fez o escritor e ativista Anderson França, 44, e sua mulher venderem tudo e partirem do Rio de Janeiro para Portugal, em outubro.
“As ameaças eram feitas pelas redes sociais, por e-mail e por ligações. Eram frases como: ‘Vamos matar você com requintes de crueldade!’, ‘Sabemos onde seus parentes moram’ e ‘Não vai sobrar nada seu para contar história’. Por isso, ninguém sabia onde estávamos, apenas família e amigos”, afirma.
Os ataques começaram em 2012, quando denunciou, nas redes sociais, detalhes da morte do pedreiro Amarildo, morto por policiais militares na favela da Rocinha. Desde então, o ativista tentou driblar o perigo até 2018. “Choveram ameaças depois que defendi publicamente uma moça vítima de racismo. Até que, um dia, recebi uma foto da minha mãe fazendo compras numa feira no subúrbio. Uma mensagem dizia que, da próxima vez, seria o corpo dela esquartejado na porta da minha casa. Foi a gota d’água”, conta.
A estudante Patrícia*, 27, foi ameaçada de morte depois que passou a usar as redes sociais para defender o movimento LGBT. Natural do Nordeste, hoje ela vive na Espanha. “A coisa se agravou quando descobriram o número do meu celular e da minha mãe. Ligavam várias vezes por dia. Além de me mandarem mensagens dizendo que me estuprariam para virar mulher e gostar de homem, diziam que ninguém encontraria o corpo”, diz.
Muitos pensam em fazer o mesmo e deixar o país. “Corro risco por denunciar a opressão social vivida pelo negro, pobre e favelado na comunidade onde moro, em São Paulo. Mas, depois de ter uma arma apontada para minha cara, decidi que quero viver e quero minha família viva. Já tirei o passaporte e estou juntando dinheiro para as passagens. Pretendo ir até abril”, diz o músico Alisson Oliveira.
Mesmo longe de casa, os três exilados afirmam que vão continuar a lutar por um país mais justo, onde todos possam exercer seu direito de cidadania em paz. “Estar longe fisicamente não nos impede de nada. Vamos nos articular aqui e aí também”, garante Patrícia.
Por e-mail, a antropóloga Débora Diniz disse que segue na luta: “Sigo mais do que nunca, mesmo à distância, resistindo e avançando, fazendo meu trabalho, engajada em defesa dos direitos humanos, da democracia. Não vão me calar. Não serei silenciada pelo terror”. Ela conta que as ameaças continuam. “É preciso desnaturalizar esse estado de desamparo, essa apatia com o alcance do ódio em que me parece que estamos caindo”, afirma.
* Nome fictício
Relembre
“Preservar a vida ameaçada também é uma estratégia de luta por dias melhores”, tuitou Jean Wyllys, ex-deputado do PSOL que deveria iniciar seu terceiro mandato na última sexta-feira.
O PSOL também era o partido da vereadora carioca Marielle Franco, negra, lésbica e conhecida por suas críticas à violência policial nas favelas. Ela foi morta a tiros em março do ano passado. O crime não foi esclarecido.
“População não respeita o diferente”
A miscigenação brasileira, oriunda de vários povos ao longo de mais de 500 anos de história, não é vivenciada com naturalidade no cotidiano. E a dificuldade de lidar com o que é diferente cobra seu preço, diz a cientista social Mariah Quintal, da UFMG.
“Quando olhamos para as relações sociais, a ideia do ódio à diversidade é visível. Somos um povo que encara aquilo que confronta o nosso modo de ver a realidade e suas conquistas de forma imatura. Mas, muitas vezes, essa imaturidade se estende para algo violento e extremista”, afirma.
De acordo com o cientista político Carlos Ranulfo, professor da UFMG, esse tipo de “ressentimento agressivo” se deve mais ao pouco tempo de democracia do país. “Ainda engatinhamos nos valores democráticos. A onda de conservadorismo impera”, diz. Para ele, as redes sociais e a força de discursos políticos tradicionais potencializam o fenômeno.
“Pessoas que antes não tinham voz encontraram espaço na internet. E, com a eleição de políticos que compactuam com elas, acreditam ter um direito ‘legitimado’ de expor sua opinião como querem, o que não é verdade”, pontua.
Minientrevista
Anderson França
Escritor e ativista social
Você sabe quem estava por trás das ameaças?
É um grupo completamente articulado na internet que pratica crimes virtuais como racismo, injúria, calúnia, difamação e incitação a práticas violentas, como estupro, homicídio, lesão corporal e feminicídio. O líder – Marcelo Valle Silveira de Mello, condenado em dezembro a 41 anos por crimes cibernéticos – está preso desde 2018, mas a estrutura que ele montou é muito complexa e ainda bastante atuante.
Você conhece outras vítimas?
Acabei conhecendo porque o modus operandi desses criminosos é basicamente o mesmo: agindo pelas redes sociais, por e-mail, por telefone contra nós e nossos familiares. São pessoas que sabem usar a internet e a tecnologia a seu favor: eles têm acesso a muitas informações pessoais, usam sites não rastreáveis no Brasil e não costumam deixar pistas.
Como está sendo a vida fora do Brasil?
É muito mais difícil porque eu não queria vir para cá e estava muito feliz na minha comunidade, na minha periferia. Por causa dos covardes, precisei ir embora. Mas não posso reclamar. Corro atrás das coisas com minha mulher, e temos tido muito apoio de brasileiros e europeus que sabem do nosso drama e apoiam nossa causa.
Quais são seus planos?
Já tenho a documentação para dar entrada no pedido de asilo político na França ou na Alemanha o mais rápido possível. Pretendo ajudar outros brasileiros nessa situação e não quero voltar tão cedo.