Renato* é jovem, tem 30 anos e está terminando o curso de geologia. Comunicativo, bem-sucedido e com um futuro promissor, aparentemente, ele não tem motivos para temer a morte, mas se comporta como se dali a cinco minutos fosse ter um ataque fulminante e morrer.

Quem conta é Fabíola, sua colega de sala. Renato é um hipocondríaco clássico, mas nem de longe suspeita. "Ele chega ao cúmulo de comprar antibiótico se alguém diz que está com uma coceira na garganta. Ele se automedica para evitar desenvolver uma doença que só existe na cabeça dele. Dentro da sua mochila, ele carrega de antidepressivos a analgésicos, antibióticos, medicamentos contra azia e toda sorte de doenças", relata Fabíola.

Aparecida S. já ganhou até apelido: Maria das Dores. "Todo dia é a mesma ladainha. Ela já antecipa uma indigestão por algo que não comeu, um mal-estar por um medicamento indicado pelo médico. Lê a bula de todos os remédios, conhece de cor e salteado a relação interminável de efeitos colaterais. E o pior, depois de pagar a consulta e comprar os remédios, decide que é melhor não tomar nada", diz Paulo, seu sobrinho.

Nos relatos não há exagero. Quem convive com os hipocondríacos conhece de perto a extensão dessa patologia. Isso mesmo. "A hipocondria é, sim, uma manifestação patológica que pode se apresentar em diversos graus. Sua delimitação entre as estruturas psíquicas ainda é difícil e às vezes, incerta. Está relacionada a questões do narcisismo quando a energia libidinal retorna para o eu em detrimento dos investimentos nas relações de objeto. Pode se apresentar como quadro clínico grave ou vir associada a vários tipos de quadros mórbidos, como é comum em casos de depressão", explica a psicanalista Lilian de Braga Almeida.

Nada mais atroz do que dizer para um hipocondríaco, diante de suas queixas, que ele não tem nada. "É através do órgão doente que ele está buscando expressar algo que se passa com ele. Esse é o recurso que ele tem para ‘se fazer ver’. Ele está constantemente em disputa com o saber médico exigindo mais exames, um outro medicamento ou uma nova intervenção com técnica mais moderna. Coleciona receitas, remédios e as datas das intervenções e organiza sua memória por aí", analisa Lilian.

"Ninguém consegue descobrir o que eu tenho" é uma frase típica do hipocondríaco, "mesmo sabendo que ninguém irá penetrar no seu mistério", emenda a psicanalista.

Quem convive com um hipocondríaco fica em dúvida se ele tem ou não consciência de sua patologia. "Eles não se dão conta de que há um excesso nas suas preocupações com o corpo e na sua percepção tão frequente de doenças ou sintomas físicos. Como acontece com os sintomas psíquicos, o sujeito está consciente do seu sofrimento, mas ´não sabe´ o que dele, sujeito, está se manifestando em sintoma. O hipocondríaco fica à espreita do menor sinal daquilo que vem do interior do seu corpo", responde Lilian. O hipocondríaco tem uma relação doentia e mórbida com a vida. "A estruturação psíquica do ser humano se dá por uma amarração do real, o imaginário e o simbólico em torno de uma falta que é da condição humana. Quando a falha simbólica é muito grande nessa estrutura, o sujeito fica fragilizado e acaba usando em excesso os recursos do imaginário", diz a analista. Segundo ela, as questões pulsionais ficam mal direcionadas e essa energia pode ser investida em sintomas, numa condição que Lacan chama de "gozo". "É por onde flui a energia que poderia ser investida em prazer, trabalho e criação, mas falta a esse sujeito o salto simbólico e ele fica preso à dor, ao gozo mórbido", explica.

Ela conclui: "É a expressão de sofrimento de um sujeito que, ao lhe faltarem os recursos simbólicos, vai tentar dizer que há algo de errado com ele, no seu corpo, e vai pedir ajuda".

* Os nomes são fictícios a pedido dos entrevistados.

Glossário
Hipocondria. Faz parte dos transtornos somatoformes, cuja característica é a presença de sintomas que levam a pensar em uma patologia física que de fato não existe.