Quatro décadas se passaram e Cibele Itaboray, de 51 anos, ainda se lembra detalhadamente do dia que foi abusada sexualmente pelo ex-padre Bernardino Batista dos Santos, em 1981. O antigo pároco foi preso nesta quarta-feira (23) em Juatuba, na região metropolitana de Belo Horizonte. Na época, ela tinha 8 anos e tinha acabado de participar da coroação de Nossa Senhora, um rito importante para os fiéis, quando o padre a pegou pela mão e a levou para uma quadra da paróquia que ele era responsável, onde cometeu o crime. Ela conta que, depois que teve consciência do que tinha acontecido, se afastou totalmente da igreja, até os dias de hoje. "A minha fé permanece a mesma, mas eu só me afastei da igreja. Nunca mais fui e não consegui voltar ainda", explica a vítima. 

"Ele era íntimo da minha família e almoçava recorrentemente lá em casa. O dia da minha coração foi um dia de celebração, até o momento em que ele me pegou pela mão, pediu autorização aos meus pais para que eu fosse ajudá-lo a recolher algum documento e me levou para o cômodo ao lado da quadra onde acontecia a celebração. Ele trancou a porta e me disse para não fazermos barulho e nos abaixarmos, pois um homem estava atrás dele. Ele me deitou em um papelão, se deitou em cima de mim e passou a se masturbar, me esfregando. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas permaneci calada porque fiquei pensando no homem que estava atrás dele. Assim que ele acabou, ele só disse que 'precisava daquilo', se limpou, e saímos como se nada tivesse acontecido", relembra a vítima. 

Cibele foi estuprada duas vezes até que decidiu confessar à mãe o que tinha acontecido. "Antes da terceira vez acontecer, eu contei para a minha mãe, e ela até denunciou a situação à arquidiocese, que nada fez na época. A igreja tinha alegado que Bernardino tinha uma doença mental. Mesmo assim, continuamos indo à igreja, até que eu parei de vez porque adoeci", disse.

A vítima conta que sofre com doenças psicossomáticas desde aquela época, devido ao grande impacto emocional vivido, e que durante o trauma ela chegou a ter câimbras, espasmos, e até perdeu as forças nas pernas e precisou engatinhar algumas vezes pela casa. "Claro que na década de 80, a psicologia era desacreditada, mas ao longo do tempo eu e os meus médicos fomos percebendo que tudo o que eu sentia no meu corpo acontecia por causa do trauma que eu tinha vivido. Anos depois, fui diagnosticada com esclerose múltipla e todos os meus médicos confirmaram a relação da doença autoimune com o trauma vivenciado", acrescenta. 

Esclerose múltipla é uma doença crônica, degenerativa, autoimune, que ataca as próprias células de defesa do organismo, e inflamatória que afeta o sistema nervoso central. 

'Nunca consegui me casar  por não confiar no outro', diz vítima

Além das consequências em seu corpo físico, Cibele explica que faz terapia há muitos anos para se curar do trauma vivido. Mas, ela afirma que, mesmo sendo mãe de um casal de 27 e 29 anos, e avó de um bebê de 1 ano e meio, ela não conseguiu confiar em alguém afetivamente a ponto de se casar. "É bom ter um companheiro, mas, depois do que eu vivi, eu não consegui confiar em ninguém. Hoje, não me faz falta", acrescenta. 

Durante a criação dos seus filhos, a vítima conta que escolheu a sinceridade, contando tudo o que já tinha acontecido com ela. "Eu acredito que os pais precisam ser assim. Eu contei tudo para eles, de tudo o que eu vivi", disse. 

Alívio após a prisão

"Agora me sinto tranquila e mais aliviada. Mesmo que falar e reviver o trauma neste dia seja difícil, eu me sinto em paz em saber que ele foi preso", disse Cibele Itaboray. Bernardino, de 77 anos, ex-padre da igreja Santa Luzia, no bairro Paraíso, região Leste da capital, foi preso pela Polícia Civil em sua casa, em Juatuba, na região metropolitana de Belo Horizonte, nesta quarta-feira (23). 

O ex-padre foi afastado das funções por suspeita de assédio cometido contra um grupo de mulheres quando elas ainda eram crianças. Depois de vir à tona uma série de denúncias contra o sacerdote, o padre foi transferido para a paróquia Cristo Rei, no bairro Industrial, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Desde novembro de 2021, porém, ele não exerce mais as funções como padre.

Por meio de nota, a arquidiocese informou à época que, após as denúncias, começou um processo de investigação no qual ouviu vítimas do ex-padre. Relatou ainda que os trâmites ocorreram em sigilo.