Quando levou o seu celular para consertar no quiosque Prime Tech em um shopping de Belo Horizonte, uma engenheira civil de 37 anos não esperava que acabaria sendo vítima de intolerância religiosa, supostamente cometida pela proprietária da loja. Após dizer que não poderia mentir em nome dos seus "Orixás", a mulher ouviu a suspeita dizer "sai demônio" e "sai daqui você e seus demônios", antes de ter o celular jogado no chão, conforme o seu relato à polícia.
O caso teria acontecido no último dia 22 de setembro, porém, só foi denunciado pela vítima a O TEMPO nesta segunda-feira (7 de outubro). Ela conta que seu primeiro contato com o quiosque Prime Tech foi no dia 16 de setembro, quando deixou o celular para consertar a tela. "Eu trabalho fazendo orçamentos, visitando clientes, portanto, eu atuo principalmente com o celular. Estava usando ele com a tela com uma mancha preta há algum tempo e, por morar perto do shopping, achei mais cômodo levar lá para fazer o conserto", detalhou.
Após buscar o aparelho algumas horas depois, ela acabou percebendo que o telefone passou a apresentar problema no microfone, não sendo possível fazer ligações ou enviar áudios. Ao retornar na loja, ela foi informada que seria necessário voltar novamente no final de semana para solucionar o problema.
No sábado seguinte, dia 21, a engenheira então levou o aparelho, que seria buscado no domingo. Foi somente na hora de reaver o celular que ela teve, pela primeira vez, o encontro com a mulher que acusa de intolerância religiosa. Depois de explicar todo o histórico do que havia ocorrido, a dona da loja teria afirmado que o celular já estaria com o problema no áudio antes de ser deixado na loja para consertar a tela e que, por isso, seria preciso cobrar R$ 100.
"Eu estava sem cartão, e disse que precisava do aparelho para poder pagar, mas ela não queria me entregar. Eu também contestei, e falei que ela poderia olhar no histórico do celular para ver que, até eu deixar ele lá pela primeira vez, o áudio funcionava normalmente. E foi então que eu afirmei que minha religião não permite mentira e disse que não mentiria pelos meus guias e Orixás. Essa frase incomodou muito ela", detalhou.
Dona da loja tentou jogar celular em lixeira
Após os Orixás serem citados, a dona da loja teria passado a dizer que iria retirar a peça trocada, dando início a uma discussão entre as duas. Após pedir que a mulher acionasse a polícia, uma vez que ela não poderia fazer isso por estar sem telefone, a dona da loja teria gritado "sai daqui você e seus demônios", perguntando em seguida: "Você quer seu celular? Então vai buscar", lançando o aparelho em direção a uma lixeira.
"Eu fiquei um pouco atordoada. Tentei achar o celular e não consegui, mas um funcionário da obra achou ele perto de uns tapumes e me entregou. Foi então que um funcionário chamou o segurança e eles me encaminharam ao Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) do shopping", lembra a engenheira civil.
A cliente conta ainda que, muito constrangida, ela só percebeu o que tinha sofrido após outras pessoas que passaram por ela comentarem que aquilo tinha sido intolerância religiosa. Após um atendimento inicial no SAC, a vítima foi embora, retornando alguns dias depois para uma reunião com a administração do Shopping Del Rey, na região Noroeste de BH, onde fica o quiosque.
"Eles se colocaram à disposição, pediram desculpa por tudo o que tinha acontecido e ficaram até indignados com o que tinha acontecido. Se colocaram à disposição e falaram que as imagens estavam salvas para quando o advogado precisasse, para um eventual processo", lembra.
O TEMPO tentou contato por telefone com a loja Prime Tech do Shopping Del Rey, porém, apesar de terem visualizado a mensagem, até a publicação da reportagem a empresa não tinha se posicionado sobre o ocorrido.
Imagens negadas
Entretanto, após a engenheira civil registrar um boletim de ocorrência e passar a ser assistida pelo advogado Wagner Dias, presidente da Comissão de Direitos Humanos da 222ª Subseção da OAB-MG, do Barro Preto, o centro de compras teria se negado a disponibilizar as filmagens.
"Solicitamos ao shopping as imagens do ocorrido e, agora, o shopping formalmente se recusou a fornecer as imagens, alegando a lei de proteção de dados. Então vamos iniciar os procedimentos judiciais e perante a polícia para que, o mais rápido possível, essas imagens sejam liberadas a fim de serem adotadas as providências judiciais adequadas à solução desse problema", afirmou o defensor da mulher.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Shopping Del Rey afirmou, por nota, que repudia veementemente "toda e qualquer forma de discriminação", reiterando que o respeito "é um valor fundamental e inegociável".
"Sobre as imagens, uma vez que são protegidas pela Lei Geral de Proteção de Dados, só podem ser disponibilizadas aos órgãos competentes, mediante o requerimento oficial das autoridades", concluiu o centro de compras.
Crime tem pena de até 1 ano de prisão
Previsto no artigo 208 do Código Penal, o crime de intolerância religiosa tem uma pena de um mês a um ano de reclusão, e multa, pena que pode ser agravada quando há o emprego de violência, como explica o advogado criminalista Bruno Rodarte.
"São considerados atos de intolerância religiosa três situações. A primeira é escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa - ou seja zombar de terceiro em virtude dessas situações religiosas de crença. A segunda trata de impedir ou perturbar prática religiosa, cerminônia ou culto religioso. E, a terceira, é por vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso", explica.
Rodarte pontua que, caso a pessoa seja vítima de intolerância religiosa, o primeiro passo é registrar o boletim de ocorrência narrando os fatos ocorridos. "A partir desse registro às autoridades competentes, seja delegado ou Ministério Público têm o dever funcional de apurar os fatos e buscar responsabilizar aquele que tenha praticado determinada conduta", completa o criminalista.