CRIME ORGANIZADO

'Drive-thru maior que o Burger King e o McDonald’s juntos', diz morador do Cabana

Segundo moradores, principal mudança após a entrada do TCP na comunidade foi justamente no "escancaramento" no comércio de drogas

Por O TEMPO
Publicado em 27 de maio de 2024 | 06:36 - Atualizado em 27 de maio de 2024 | 10:34
 
 
 

Apesar da “máscara” religiosa, a venda de drogas, especialmente a cocaína, segue sendo o “carro-chefe” dos criminosos convertidos ao Terceiro Comando Puro (TCP) no Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte. Segundo dois moradores do aglomerado ouvidos por O TEMPO, para além da “paz”, que atualmente parece prevalecer no local, a principal mudança notada por eles desde a entrada da facção carioca, em meados de 2020, é que a comercialização de drogas ficou mais livre. 

“A mudança não foi muita, só percebemos que a venda das drogas ficou um pouco mais escancarada, coisa que antes a gente não via. Mas a questão é que, na favela, o único órgão que atua diretamente, e diariamente, é a polícia. É aí que entra a atuação do ‘poder paralelo’, pois são os bandidos que promovem lazer na comunidade, ajudam os que precisam, além de serem pessoas com que a maioria aqui cresceu junto ou viu nascer”, conta uma moradora da comunidade, de 22 anos, que terá a identidade preservada. 

Segundo outro morador, um homem de 36, em um dos pontos do tráfico mais conhecidos, o Paredão, existe um esquema em que os “clientes” sequer precisam descer dos carros. “É um drive-thru, maior do que o Burger King e o McDonald's juntos. Por meio da dominação carismática e de certa pacificação, o sistema gira, né? E de forma imensa”, afirma. 

Ele lembra, por exemplo, dos protestos ocorridos em janeiro deste ano após a morte de um rapaz, de 20 anos, apontado como traficante da região por policiais. “Não foi o tráfico que queimou, foram os moradores mesmo. Foi a população que ficou indignada por acreditar que houve uma execução. O Riquinho (suspeito morto) era tão benquisto pela população, que gerou essa revolta, que fez gente trabalhadora cometer crime. Essa dominação carismática gera empatia, que é onde mora a principal força dessa turma”, conclui o morador.

De acordo com um policial civil que já atuou na região, o volume de drogas vendido no bairro é, de fato, absurdo. “Acredito que seja uma das favelas que mais vendem droga em BH. Não dá para falar, mas um colega outro dia disse acreditar que já tenha ultrapassado o aglomerado da Serra em volume de drogas. Quando você passa lá à noite, de madrugada, sempre tem fila, todo dia da semana. São milhões de reais por semana”, denunciou o agente, que não será identificado. 

Enquanto isso, a população se sente abandonada pelo poder público. “O que o Estado faz é só para oprimir os moradores, e quem paga a conta não é quem está envolvido com a facção. A verdade é que a única forma de mudar isso é por meio de políticas públicas. O Cabana é o segundo maior aglomerado de Minas, e não tem um Cras em funcionamento, não tem uma escola municipal de educação infantil, um centro cultural. Essa facção entrou há mais de três anos na favela, por que só estão falando agora? A nossa comunidade é invisibilizada pelas margens do Anel Rodoviário, da linha férrea e do cemitério. No aglomerado da Serra, o juiz abre a janela, vê a favela e pensa: ‘Isso não está bom’. No morro do Papagaio, é a mesma coisa. Mas aqui (Cabana) é um bolsão de vulnerabilidade, pois fica escondido dos olhos de quem não entra no bairro”, reclama o morador. 

Ludmila Ribeiro, pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica por que as operações de ocupação policial nas favelas de BH não provocam resultados efetivos. “Esses discursos são mais midiáticos, para gerar uma aceitação na sociedade, pois a conexão da facção vem do sistema prisional para a família e, depois, da família para a comunidade. É uma conexão pessoal, emocional, que dificilmente vai ser desconstruída a partir de ações policiais. Então, a polícia teria que prender a comunidade inteira”, pontua. 

Em entrevista a O TEMPO, a professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Christina Vital da Cunha, que também é autora do livro “Oração de Traficante: Uma Etnografia”, pontuou que essa dinâmica criminal, com dominação territorial faccional por meio de símbolos, tem sido notada especialmente com a entrada do TCP em outros Estados do Nordeste e em BH. Entretanto, a especialista alerta sobre outra faceta da facção rival do CV que pode vir a ser “importada” para Minas: a relação com milícias. 

“Temos que lembrar que o Terceiro Comando Puro tem, em várias localidades, uma relação já documentada com integrantes de milícias cariocas. É importante entender essa dinâmica do crime e como ela vai somando forças em torno de um interesse comum, que é o ganho cada vez maior de territórios. Isso, porque a dominação territorial significa mais e mais dinheiro arrecadado, com as várias fontes que vêm dessas atividades criminais, que não são só a venda de droga”, destaca Christina.

Polícias Civil e Militar se posicionam

Procurada pela reportagem de O TEMPO, a PM informou, por nota, que a operação Ocupação, promovida no dia 8 de janeiro deste ano, tinha o intuito de ocupar a localidade e “continuar garantindo a segurança dos moradores dessa região. “Na oportunidade, foram cumpridos diversos mandados de busca e apreensão, em residências de criminosos locais, sendo desenvolvidas diversas estratégias de policiamento para a localidade. Importante ressaltar que esta é uma atuação rotineira da Polícia Militar na localidade, o que demonstra, em relação aos últimos dez anos, uma redução histórica nos crimes de roubo e homicídios na área da unidade”, escreveu a corporação. 

Desde então, segundo a polícia, foram desencadeadas 430 operações na área, culminando na prisão de mais de 130 pessoas e em 15 armas apreendidas. “Há também o desenvolvimento de várias ações positivas no bairro, como intensificação do trabalho preventivo, sendo realizadas diversas reuniões em conjunto com a comunidade, onde são discutidas questões de segurança pública, vislumbrando a resolução de problemas locais”, continua a PM.

Por fim, a corporação pediu a “ajuda” da comunidade, que seria “fundamental” na prevenção aos crimes. “Comunique os crimes de forma oportuna à Polícia Militar, por meio do 190 e do Disque-Denúncia (181), ou, ainda, mediante contato nas Bases de Segurança Comunitária ou unidades policiais”, concluiu. 

Já a Polícia Civil destacou que vem desenvolvendo uma série de ações para o combate ao crime organizado no Estado, o que inclui estratégias para “neutralização” destas facções em território mineiro, muitas delas sigilosas. “A presença de facções criminosas nacionais em Minas decorre da própria condição de interestadualidade e transnacionalidade do crime organizado, não sendo, portanto, uma condição específica no Estado; ou seja, as forças de segurança não avaliam que isso seja devido a qualquer relação que a imprensa denominou como ‘apadrinhamento’”, disse a instituição. 

A Polícia Civil destacou ainda que tem intensificado os esforços para desarticular as organizações criminosas e impedir a expansão de suas atividades em Minas. “Para ter uma ideia do trabalho realizado no campo da investigação criminal, de janeiro a novembro de 2023, a Polícia Civil, por meio de suas equipes lotadas em unidades especializadas e territoriais em todo o Estado, deflagrou mais de 3.700 operações policiais em repressão a organizações criminosas e ao tráfico de drogas, resultando em quase 5.000 prisões e na apreensão de mais de 600 adolescentes”, finalizou.

Resposta da PBH

Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte disse que já houve o anúncio de criação de um Cras na comunidade do Cabana. "O local onde será instalado o novo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Cabana foi definido em diálogo com a comunidade ao longo do ano de 2023. Atualmente, o imóvel está cedido para uso a uma Organização da Sociedade Civil (OSC), mas a Prefeitura de Belo Horizonte já formalizou o distrato da parceria, de modo que seja possível iniciar as obras estruturais para adequação à oferta dos serviços do Cras, o que deve acontecer ainda no primeiro semestre de 2024. O Cras Cabana será a 35ª unidade do tipo na cidade. A lista com todas as 34 unidades atuais está disponível em pbh.gov.br/cras”.

Além disso, a PBH informa que tem outras estruturas no local, onde residem 18 mil pessoas, considerando os bairros: Nova Cintra, Nova Gameleira, Patrocínio, Madre Gertrudes, Vista Alegre e adjacências. “O Cabana do Pai Tomás conta com quatro unidades de saúde nas proximidades, sendo: Cabana, Cícero Ildefonso, Vista Alegre e Waldomiro Lobo. A Cabana Pai Tomás também tem todos os serviços regulares de limpeza urbana. A coleta domiciliar é feita três vezes por semana. Há ainda a varrição e a capina de passeios e sarjetas. Uma vez por semana, é feita a remoção de resíduos em deposições irregulares de resíduos. Escolas municipais: Padre Henrique Brandão, João do Patrocínio. Creches: Centro Infantil Guiomar Schmidt Sanches, Creche Tia Mamália, Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente da Cabana e Região, Associação Mineira de Proteção à Criança, Creche Casinha Feliz da Comunidade Vila São José, Creche Sonho de Criança, Creche Escola Infantil Pingo D’água, Creche Sonho Realizado, Creche Crescer com Amor, Associação Espírita Lar da Fraternidade, Instituto Escudo da Verdade, Creche Primeiro de Maio, Creche Madre Mazzarelo, Sistema Aguios Batista de Ensino, Instituto Infantil Emanuel”.

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