Cinco mil, trezentos e quarenta e quatro pessoas. Número superior à população de 280 cidades mineiras. À primeira vista, um contingente difícil de ignorar, mas que, na correria do dia a dia, passa despercebido por parte dos belo-horizontinos. É gente com filhos nos braços chorando de fome e sem ter para onde ir, como foi, por muito tempo, Marta Vieira. É quem se perdeu no vício sem perceber, dormiu na rua e praticamente acordou na cadeia, como Júlio Fessô. Há quem busque a liberdade de ser quem de fato é e pague como preço o frio das calçadas, como Maria José. Sem contar os que ficam “sozinhos” no mundo, como Marciano Inácio Ferreira ficou ao perder a mãe. Além da vida nas ruas, as histórias dos quatro se unem no fato de todos terem visto no empreendedorismo uma oportunidade de mudança. É que “para viver, é preciso coragem”, como bem diz Marta.

Agora, com 58 anos, ela avista a praça Sete, no centro de Belo Horizonte, da janela do próprio restaurante. Antes, ao dormir na calçada do mesmo ponto da capital, ela via a própria vida passar como uma história em quadrinhos sem leitor, no anonimato de páginas bem-desenhadas, porém não folheadas.

Ela chegou às ruas com 16 anos e duas crianças no colo após ser doada pela mãe biológica, abandonada pela adotiva e fugir de uma “patroa” aos 13 anos. Depois disso, recebeu “acolhidas” em troca de trabalho e sofreu muitas agressões, inclusive físicas. Aos 16 anos e com dois filhos nos braços, “escolheu” as ruas de BH para deixar de ser agredida.

Trabalhou como babá e catadora de material reciclável e conseguiu juntar dinheiro para comprar um barracão no aglomerado da Serra, onde, anos depois, ela teve a ideia da virada: vender marmita. O negócio prosperou, e hoje, como empreendedora, ela colhe os frutos da coragem de dizer “não” aos abusos sofridos por anos.

Uma história que, contada assim, parece até “milagre”. Milagrosa também foi a diferença que a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de BH fez na vida do mineiro Marciano, 52. Após a morte da mãe dele, sem ter para onde ir, foi viver nas ruas da capital. Com apoio da pastoral, ele criou a coragem que Marta tanto se orgulha de ter e usou a criatividade para inventar um óleo de eucalipto com citronela para vender. A mistura fez tanto sucesso que ele conseguiu alugar uma casa. “Hoje tenho minha cama”, comemora o empreendedor, que se qualificou pelo projeto Empreendendo Vidas, da pastoral.

Há 24 anos atuando nesse projeto, Claudenice Rodrigues Lopes afirma que o empreendedorismo é uma das principais alternativas encontradas por aqueles que “desejam mudar de vida”. “Infelizmente, a oportunidade de trabalho para essa parcela da população ainda é muito difícil, por isso elas optam trabalhar por conta própria”, afirma.

Mais do que um trabalho, o empreendedorismo entra na vida dessas pessoas como uma chance de dar outro sentido à própria realidade, segundo a secretária municipal de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de BH, Chyara Sales. Essa mudança é um dos grandes objetivos por trás do Programa Estamos Juntos, cujo objetivo é garantir a inclusão produtiva da população em situação de rua por meio de qualificação, inserção no mercado de trabalho e incentivo ao empreendedorismo. “Nós nos mobilizamos para acolher essas pessoas e apresentamos ferramentas do mercado, entre elas a de empreender”, diz. 

Trajetória rumo à própria identidade

Nascida na zona rural de Itabirito, na região Central de Minas Gerais, aos 27 anos Maria José teve que tomar uma decisão: ficar na casa da família e abrir mão da própria essência ou sair rumo ao desconhecido, só com uma bolsa e documentos nas mãos. “Eu sempre fui uma mulher aprisionada no corpo de um homem”, conta a mulher trans, que deixou o passado para trás e agora constrói o futuro por meio do empreendedorismo.

Atualmente, ela tem 37 anos. Nesses dez anos que separam sua saída do interior rumo à capital, muita coisa aconteceu. Ao chegar a BH, teve que morar nas ruas, mas pôde se apresentar com o nome que verdadeiramente a representa: “Maria José”. Sobreviveu como pôde até conhecer a Associação Nacional de Desenvolvimento Social e Educação Continuada (Asmec), onde fez curso de salgadeira e recebeu o apoio para empreender. Agora, divide a casa com uma amiga que conheceu na rua e sonha em ter o próprio restaurante. “Estou no caminho”. 

A Asmec capacita e recoloca no mercado pessoas em vulnerabilidade social, e o empreendedorismo é uma das principais alternativas. “Eu vejo o empreendedorismo como condição do humano. Para a população de rua, que tende a ser mais livre, é um tipo de trabalho que faz mais sentido do que ter carteira assinada”, diz Andrea Ferreira, presidente da Asmec.

De volta às raízes para criar, mudar de vida e empreender

Morador do Morro do Papagaio, em BH, Júlio César de Evaristo Souza, o Júlio Fessô, começou a usar drogas aos 17 anos. O vício o fez viver nas ruas e parar na cadeia. Na prisão teve a ideia: “Mentalizei abrir algo para vender produtos relacionados ao aglomerado onde nasci e vivi”, diz.

Após deixar o presídio, ele tornou o sonho realidade com o projeto Eu Amo Minha Quebrada. “Promovemos oficinas de fotografia, serigrafia, futebol. Vendemos camisetas, ecobags, bótons, bonés e canecas personalizadas”, afirma.

Para a analista do Sebrae Minas Laurana Viana, o caminho para o sucesso é essa busca por algo que faça sentido para o empreendedor. “É preciso identificar qual produto oferecer e o retorno financeiro que terá dentro das condições e do ambiente que se tem”.