O número de mulheres julgadas por envolvimento com drogas em Minas Gerais cresceu 10% em 2023 comparado com o ano anterior. Foram 8.670 sentenças proferidas no Tribunal de Justiça de Minas Gerais no ano passado, o equivalente a 23 casos avaliados pelos magistrados a cada dia envolvendo venda, uso, posse, produção, financiamento ou colaboração com organização criminosa ligada ao tráfico. Essa é a maior quantidade de casos sentenciados pelo menos nos últimos cinco anos, conforme levantamento feito pelo TJMG com exclusividade para a reportagem.
O tráfico de drogas é também a principal causa de encarceramento feminino no Brasil. Segundo o Ministério da Justiça, o país tem 470.360 vagas em 1.411 estabelecimentos prisionais. São cerca de 33 mil mulheres encarceradas no país e 437,3 mil homens. Entre elas, 57,13% têm como causa de prisão o tráfico de drogas e 22,75%, crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e estelionato. Já entre os homens, o principal crime que os leva para a cadeia é contra o patrimônio (40,42%), seguido pelo tráfico de drogas (29,17%).
Por trás dos números e das grades que as encareceram, uma realidade mapeada por especialistas: muitas mulheres presas por causa de drogas sequer têm envolvimento efetivo com o crime. Várias foram influenciadas por homens, e uma parcela considerável o faz por necessidade e garantia de segurança. “A maioria das mulheres que vão parar na cadeia vai por causa do homem. Muitas delas são as meninas que levam droga para dentro da cadeia. E levam droga pelas mais variadas razões: há as que levam como negócio, como trabalho; outras levam porque caem na chantagem dos namorados, dos amigos, dos parentes, do avô que está preso, às vezes até do pai”, explica o médico Drauzio Varella, com longo período de atuação dentro do sistema carcerário.
Segundo o presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis), o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, mesmo aquelas que estão no crime por livre vontade, geralmente, têm atuações diferentes das masculinas. “As mulheres envolvidas no tráfico normalmente estão em parceria com outras pessoas, porque é muito raro ter liderança feminina”, constata.
Viviane, que não terá o sobrenome revelado a pedido dela, foi presa em 2017 por seis meses em função do tráfico. Casada com um homem violento e viciado em cocaína, saiu de casa com dois filhos, sem emprego e com o ensino fundamental incompleto. Quando se tornou mãe solo de um bebê de 1 ano e de uma criança de 4, foi preciso buscar alternativa. “Chegou um momento em que na minha casa só tinha fubá para comer. Eu conheci um rapaz que me ofereceu fazer uns ‘corres’ para ele. Passei a atravessar droga de Contagem para BH. Foram só três meses para eu ser presa, mas naquela época não faltou nada para os meus filhos”, lembra. Ela conta que, de fato, é muito raro mulheres assumirem liderança no tráfico. “Tem muita rejeição, eles falam na nossa cara que a gente não dá conta de nada”, detalha.
A rejeição também é sentida por Ana Amélia Dias de Araújo, 37, que chegou à chefia do tráfico por intermédio de um amigo. “O crime organizado não aceita tão bem mulheres, gays e lésbicas. Se a gente quiser atuar, tem que ser ‘cria’ do lugar ou herdar a biqueira (ponto de venda de drogas) de alguém. Senão, a gente serve só para esconder drogas para eles”, frisa. Até na prisão, ela teve o destino decidido por homens: “Quando eu cheguei no presídio masculino, meu caso foi para as ideias (reunião entre líderes de facção criminosa). E eles mandaram que me colocassem no seguro (ala onde ficam detentos com risco de serem agredidos). Em um desembolo desses, se diretor do presídio tentar intervir na decisão, a cadeia balança”, conta.
Nos últimos cinco anos (de 2019 a 2023), cerca de 410 mil mulheres foram sentenciadas no TJMG. É como se, a cada dia, os magistrados com atuação no Estado tivessem julgado 224 processos. A lista vai de delitos de menor potencial ofensivo, como calúnia, até os crimes hediondos, como homicídio e tortura. Em 2023, foram 81.820 sentenças envolvendo mulheres, número 5,9% menor do que as 87.020 de 2022.
‘Acho que prisão foi um livramento’: do vício em drogas ao renascimento
No Brasil, a droga não leva para a prisão apenas quem a vende. Para alguns usuários, ela pode ser destruidora. Durante os 13 anos em que morou nas ruas de Belo Horizonte, Marta Carla Santos, 41, viveu de tudo um pouco: o vício em drogas, a fome, as agressões. Até que, na versão dela, se viu de frente com a morte e reagiu tão violentamente que quase se tornou uma homicida. “Uma mulher passou, me deu um tapa na cara. Eu estava deitada no colchão, e ela jogou gasolina em mim. Eu a arrastei, bati a cabeça dela na beirada do rio Arrudas. Meu amigo e eu demos pauladas nela”, detalha. A polícia chegou antes que o pior acontecesse. Foi ali, naquela cena de violência e sangue, que ela se viu diante do fim daquela trilha. A rua e a vida desregrada a matariam.
“Eu acho que a prisão foi um livramento”, relata com a visão de quem não tinha um lar e encontrou no cárcere uma opção para reescrever a própria história longe das drogas. Presa por essa tentativa de homicídio, Marta teve tempo de refletir sobre o próprio percurso. Viu a necessidade de mudanças, mas não se arrepende do caminho percorrido. “Não me arrependo porque, se eu deixasse, ela teria tirado minha vida”. Mas, há três anos, quando foi libertada, voltou para a rua com uma sensação de não pertencimento, um incômodo que a fez buscar ajuda do Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (Presp). “Eu pensava: tenho que mudar. Eu via todo mundo tendo as coisas, uma casa, e eu na rua deitada em um papelão. E pensava ‘não aguento mais’”, recorda. Quando pediu ajuda, ela conseguiu bolsa-moradia, alugou uma casa, fez cursos de computação, culinária e costura. Agora, faz e vende roupas customizadas.
A coordenadora de Políticas Penais de Prevenção Social à Criminalidade do governo de Minas, responsável pelo Presp, Fabiana Dias, explica que o retorno para o mercado de trabalho costuma ser mais difícil para as mulheres. “São elas as que mais assumem os filhos. Para dar um curso, tem que ver se elas têm onde deixar o filho, se tem lanche para elas no lugar porque não dá para estudar com fome”, diz.