Ao sair do presídio, com os cabelos raspados, um histórico de agressão dentro e fora do cárcere, Ana Amélia Dias de Araújo, 36, tinha apenas a roupa do corpo, o alvará de soltura e o endereço de uma casa de acolhimento no bolso. “Em uma cidade imensa como Belo Horizonte, fiquei assustada e com medo. Eu só pensava: ‘Para onde eu vou? O que eu vou fazer?’”, recorda-se. Um sentimento muito parecido com o vivenciado por Marta Carla Santos, 40, que ganhou a liberdade em um dia inesperado à noite, quando teve a oração interrompida por um grito: “Junta suas coisas que você vai embora”. Ela cruzou as grades, entrou no último ônibus que passava em frente ao presídio e seguiu rumo ao total desconhecido.

Apesar de nem se conhecerem, Ana Amélia e Marta Carla têm muito em comum: um histórico de sofrimento e abandono, o crime como trilha seguida em determinada fase, as marcas do cárcere e a busca pela reconstrução das próprias histórias. Agora, elas estão em liberdade, mas, até há pouco tempo, compunham a estatística que atualmente está em 33 mil mulheres privadas da liberdade no Brasil, sendo 2.057 em Minas Gerais. 

São pessoas que, ao saírem do sistema prisional, muitas vezes, ficam em total vulnerabilidade. “Estamos falando de uma pessoa que tem um atestado de antecedentes criminais, que pode barrá-la antes da entrevista de emprego, e de uma população muito jovem e sem qualificação profissional. Mas é preciso garantia de dinheiro rápido para não ter o crime como escolha de sobrevivência”, explica a coordenadora de Políticas Penais de Prevenção Social à Criminalidade do governo de Minas e do Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (Presp), da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Fabiana Dias. 

O Presp garante abrigo, qualificação, emprego e cidadania para quem sai dos presídios e, na prática, fica livre de algemas físicas, porém preso em grades invisíveis impostas pelas dificuldades da vida após o cárcere. De janeiro de 2022 a março deste ano, 2.461 mulheres foram acolhidas em uma das 15 unidades presentes no Estado. Quem trabalha no programa encontra vidas e histórias em retalhos. “As pessoas saem sem documentação e com vínculo familiar rompido”, explica Fabiana. 

A falta da rede de apoio é ainda pior para mulheres do que para homens, e uma das explicações é cultural, segundo um médico que atuou anos em presídios, Drauzio Varella: “A família fica envergonhada. Um assaltante de banco vai preso, ninguém fala da vida sexual dele. Uma mulher que faz o mesmo, a sociedade interpreta aquilo como se fosse uma mulher de vida fácil”. Um preconceito que se soma às vulnerabilidades de uma vida inteira. 

Há mais de dez anos à frente do Presp, Fabiana lembra que a desigualdade social é uma das portas de entrada das cadeias. “São pessoas em sua maioria pretas e pardas, com escolaridade muito baixa, em desemprego, moradoras de periferias. Muitas vulnerabilidades sociais já existiam antes da entrada na prisão e são agravadas na saída”, diz. Dados do Ministério da Justiça mostram que, entre as detentas brasileiras, 67,78% são negras. Quanto à escolaridade, 63,41% de todos os presos do país têm no máximo ensino fundamental. “O preconceito existe, por isso uma das frentes de atuação do Presp é sensibilizar as empresas para que possam contratar esse público”, explica Fabiana. 

Ana Amélia e Marta foram acolhidas pelo Presp assim que saíram do presídio e têm sido qualificadas e orientadas para uma colocação profissional. Mas, antes de virar gerente do tráfico em um bairro de Luz, na região Central de Minas, Ana já havia tentado empregos formais. Na época, ela queria juntar dinheiro para fazer uma transformação corporal e conseguir se olhar no espelho. “Eu não devia ter nascido em um corpo de homem, sou mulher. Comecei a surtar por isso, passei a me cortar e a usar droga para tirar essa dor psicológica. Depois passei a vender por dinheiro”, conta. Mas não foi acolhida pelo mercado: “É muito difícil empregarem mulheres trans”, afirma Ana. 

Marta também veio de um contexto de ausências. Teve a rua como morada dos 19 aos 32 anos. E tudo que veio depois, de uma forma ou de outra, foi consequência desse “destino”. “A rua não é segura, não tem tranca. Às vezes, eu tentava me desviar dos problemas, mas não dava. Aí eu comecei a fazer coisas erradas e acabei parando no sistema”, conta. Ela foi presa por três vezes em uma escalada de crimes: tráfico, roubo e tentativa de homicídio.

‘Já passei por coisas que você nem imagina’

Ao entrar na sala do Presp, no centro de BH, Ana Amélia Dias de Araújo tinha dois motivos de aflição: se seria filmada e como as falas dela seriam utilizadas. “Desculpa, mas quem passa pelo que já passei na vida confia desconfiando de tudo. E não tenho condições de ser filmada sem estar maquiada”, disse, enquanto tirava da bolsa pincéis e maquiagem. Mulher trans, que passou por preconceitos, abusos físicos, psicológicos e sexuais por pessoas próximas e que conseguiu ter voz ativa na liderança do tráfico de drogas até ser presa e experimentar a solidão, Ana tem motivos para desconfiar. “Já passei por coisas que você nem imagina”, adiantou. 

Ao longo da vida, Ana Amélia procurou ajuda espiritual, religiosa e psiquiátrica. Até que, sem sucesso, encontrou refúgio no tráfico de drogas, que a fez ser presa por três anos. “Eu precisava de dinheiro e nunca tive jeito para prostituição”, explica. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais mostram que 90% da população trans no país precisa se prostituir para sobreviver por falta de oportunidade de trabalho. 

No cárcere, ela passou por agressões e teve o cabelo raspado enquanto esteve em presídio masculino. “Meu cabelo é a minha identidade”, diz. No início da adolescência, aos 14 anos, ela também raspou os fios quando em uma igreja disseram que ela estava com o demônio no corpo. “Eu devia ter nascido no corpo de mulher e não nasci, mas eu não tenho culpa disso”, pontua. Agora, na trilha da reconstrução, ela tem feito cursos e planos: “Vou abrir um negócio, terminar minha harmonização e voltar para minha cidade de cabelão e salto alto. Quero morrer em um corpo de mulher”.