Drauzio Varella é médico e se dedica também a atender detentos e contar suas histórias. Profissional e despido de preconceitos, Drauzio ajudou a reduzir a taxa de Aids e HIV no antigo. Carandiru e depois passou a atuar em uma cadeia feminina.

Por que as presas são abandonadas nas cadeias, diferentemente dos homens? Já pensei muito sobre isso. É muito difícil. Você não tem um motivo único pra isso. Primeiro porque as mulheres são muito mais solidárias que os homens. Normalmente, se você for a um hospital em BH ou em SP, em qualquer lugar, à noite, você vai ver que quem está acompanhando os doentes são as mulheres. Quando a mulher é presa, acho que as famílias já aceitam com mais dificuldade. A família fica envergonhada. E tem uma área da sexualidade. Um assaltante a banco vai preso, ninguém fala da vida sexual dele. Mulheres que praticam crimes semelhantemente, a sociedade interpreta aquilo como se fosse que transa com vários homens. Qual é a ligação entre uma coisa e outra? Nenhuma. Porque as pessoas partem do princípio: se ela é assaltante, ela deve ser uma mulher meio prostituta.

Como elas lidam com a solidão? O homem, quando vai preso, sabe que tem sempre uma mulher para cuidar dos filhos dele. A mulher, quando vai presa, acha que ninguém vai cuidar dos filhos dela com o carinho que elas dedicariam a eles. E esse é um ponto muito forte na solidão. De um lado, a solidão, porque a família não vai visitar, as relações amorosas que elas tinham se desfazem. Por outro lado, a saudade dos filhos, a preocupação com os filhos. E aí elas acabam estabelecendo relações entre elas e, no final, criam um ambiente isolado da sociedade. Estão no mesmo barco, elas têm uma liberdade de comportamento, têm uma liberdade sexual que elas não têm na rua. 

Há um encarceramento em massa de mulheres? Eu não tenho a menor dúvida. A aplicação rígida do Código Penal cria um problema social que você não tem como resolver, com consequências terríveis. Meninas que levam droga para dentro da cadeia. E levam droga pelas mais variadas razões: há as que levam como negócio mesmo, como trabalho, como tráfico e ganham dinheiro e, dependendo da quantidade de droga, ganham quantias até razoáveis. Outras levam porque caem na chantagem dos amigos, dos parentes, do avô que está preso, às vezes até do pai. Essa menina chega na cadeia e deixou os filhos em casa (como regra). Então, veja: essa moça não voltou para casa, muitas vezes deixou os filhos sozinhos porque a mais velha, com 10 anos, cuida dos outros. E depois não volta. Vai chegando a noite, o que faz com essas crianças? Aí um vizinho leva para casa, ou, quando ela tem família, tem mãe, alguém vai buscar as crianças. E aí veem que a mãe não volta no dia seguinte. Vão atrás para saber o que aconteceu e encontram essa moça presa. Os juízes, normalmente, para essas condenações, dão quatro anos. Mas ela não vai cumprir os quatro anos? Não vai cumprir. Mas, se fossem quatro dias, já era muito dada essa situação social. Ela vai cumprir um ano e meio, dois anos se tiver bom comportamento, e pode ser que ali, na cadeia, ela seja envolvida em alguma confusão, e aí perde o direito de sair da cadeia. Agora, explica pra mim uma coisa: quem é que ganha o quê com esse tipo de situação? A moça não ganha. A família perde, os filhos. O que vai acontecer se ela tem dois ou três filhos? Quem é que nas classes mais pobres tem condição de pegar duas, três crianças a mais para criar além das próprias? Então, acaba que se dissolve a família. Quando ela sair, como ela vai reunir essas crianças? E vai sair com a marca de ter sido presa, dificilmente vai conseguir um emprego decente. Você desestruturou tudo. E aí a gente se assusta quando a criminalidade aumenta. 

Há ressocialização nas cadeias brasileiras? Não existe a individualização do cumprimento da pena porque é completamente diferente você pegar uma mulher que tem uma longa carreira no crime, é pega com droga e recebe uma pena igual à da outra que é primária e cumpre pena na mesma cadeia. Não é que a reincidente vai ser influenciada pela outra que teve um comportamento exemplar durante a vida. É o contrário que acontece. Sempre é o contrário. É muito raro você conseguir que essas pessoas não voltem a delinquir porque o mundo que elas encontram fora é mais adverso do que quando elas delinquiram.

O motivo do encarceramento das mulheres tem relação com o homem e com o tráfico de drogas? Não sei te dizer estatisticamente, mas é muito frequente. Mulher ir parar na cadeia por causa de um homem. Por ter conhecido uma pessoa, que criou uma situação que levou essa moça para o ambiente do crime. É muito comum isso, muito mesmo. 

O nome do livro “Prisioneiras” foi pensado apenas em referência às presas ou a todas as mulheres, em alguma medida? Olha, daqui a pouco vai escurecer, você vai sair do seu trabalho e vai para casa. E você vai de condução, vai pegar um ônibus. Primeiro, enquanto você está na rua até o ponto de ônibus, você vai preocupada que possa acontecer alguma coisa com você. Aí você pega o ônibus. Você precisa estar segura de que nenhum homem vai chegar e abusar de você, adotar um comportamento agressivo. Desce no ponto do ônibus, vai a pé para casa e vai assustada porque aí já vai ser noite e você vai olhando para todos os lados. Tudo bem, as cidades brasileiras estão muito inseguras hoje, acontece com todo mundo, acontece. Mas eu ando pela rua, moro no centro da cidade, em São Paulo, ando esperto, lógico. Eu ando e não sinto um décimo do medo que as minhas netas e as minhas filhas sentem nas ruas. A mulher vive em sobressalto num país como o Brasil. O tempo todo assustadas, com medo, elas são criadas sob a autoridade paterna. Os pais são muito rigorosos com as filhas, as mães também, muito mais do que o rigor que elas têm na educação dos filhos. E aí elas estudam hoje, a vida mudou bastante. Estudam, casam e passam a ter uma autoridade do marido por cima delas. E os homens são machistas, em sua grande maioria, e aí o marido não gosta que ela coloque tal roupa, que ela saia com as amigas. A mulher vive o tempo inteiro reprimida. 

Quais os principais desafios que o senhor teve como um homem sendo médico em uma cadeia feminina? Eu escrevo no “Prisioneiras” que, no primeiro dia que eu entrei na cadeia feminina, já tinha uma experiência grande em cadeias masculinas. Cheguei na cadeia feminina em 2006. E eu entrei na detenção em 1989. Na detenção fiquei até a implosão que foi em 2012, então foram 13 anos. Mais quatro anos atendendo em outras cadeias masculinas. E, quando cheguei na feminina, aconteceu uma situação ali que eu não entendi nada do que tinha acontecido. E eu pensei comigo na hora que fui embora: “Vou ter que aprender tudo de novo, porque os conhecimentos que eu trouxe não se aplicam aqui (na cadeia feminina)”. E não se aplicam porque as mulheres são muito mais complexas do que os homens. Eu acho que isso tem aspectos que são até mais biológicos. Pensa o seguinte: vocês têm a maternidade. O nosso papel na paternidade começa depois que a criança nasce. Aí, sim, você vai ver se é o pai, se não é o pai. Porque até a criança nascer esse é um processo totalmente feminino. Olha que complexidade que tem um organismo como esse.