Um homem amado por todos, de extrema confiança, conhecido como ‘santo do Paraíso’. Segundo mulheres que afirmam ter sido abusadas pelo padre Bernardino Batista dos Santos, essa foi a imagem que ele construiu ao longo de décadas. No entanto, não é assim que elas dizem se lembrar dele: por trás da aparente religiosidade, o pároco teria construído um legado que agora elas fazem questão de divulgar e alegam querer justiça. Por quase cinco décadas, conforme mulheres entrevistadas pela reportagem, o religioso teria abusado sexualmente de meninas entre cinco e nove anos de idade, deixando marcas e dores profundas. Mesmo após as denúncias, ele ainda estaria enviando mensagens de Natal, Páscoa e de amizade para os pais das possíveis vítimas. Em um dos textos, ele teria falado sobre Jesus Cristo para quem ele ainda chamava de ‘amigo’. Os possíveis abusos vieram à tona no fim de 2021, quando o padre tinha 73 anos, mas até hoje, quase três anos depois, as mulheres afirmam não ter visto justiça.

A advogada Ana Carolina Campos representa 23 mulheres que alegam ter sido vítimas do padre. No entanto, cerca de 60 já teriam se reunido em algum momento para relatar e desabafar sobre os abusos que elas dizem ter sofrido, segundo uma das mulheres. Conforme a advogada, após afirmar que o padre foi afastado de suas funções, a Arquidiocese de Belo Horizonte não dá mais nenhuma explicação sobre a situação do pároco, por mais que tenha sido procurada frequentemente. Investigações foram realizadas pela Polícia Civil, segundo ela, mas os crimes cometidos entre as décadas de 1970 e 2000 já prescreveram. No entanto, o padre pode ser investigado caso surja uma nova denúncia. Para a reportagem, a Arquidiocese de Belo Horizonte afirmou que o Tribunal do Dicastério para Doutrina da Fé, no Vaticano, em Roma, afastou o padre definitivamente do ofício sacerdotal (Leia nota completa abaixo).

“Os crimes que chegaram ao meu conhecimento já estão prescritos, mas elas vivem o trauma dessa violência até hoje”, pontua ela. Por anos, o religioso atuou na igreja Santa Luzia, no bairro Paraíso, região Leste de Belo Horizonte — daí o apelido ‘Santo do Paraíso’. Depois, foi transferido para a paróquia Cristo Rei, no bairro Industrial, em Contagem, na região metropolitana.

“Espero que a Igreja Católica o expulse, retire todos os benefícios dele, além de fazer uma retratação. Já não consigo entrar em igreja, passo mal e vomito. Um pedido de desculpas seria o mínimo”, diz a advogada Carolina Freitas, de 33 anos. Ela conta que foi abusada pelo padre aos 8 anos de idade, quando esteve com a mãe em um sítio que o padre teria dito pertencer à Igreja. O nome do lugar era “Luz e Vida”, mas não foi isso que ela diz ter encontrado.

Crianças eram vítimas

Carolina conta que foi para o local com a mãe. Em um dia de manhã, a mulher precisou sair por alguns instantes e deixou a filha dormindo. Foi nesse momento, segundo Carolina, que o abuso aconteceu. Os relatos descritos por ela são pesados e serão preservados pela reportagem. Mesmo não entendendo direito o que estava acontecendo, por ser ainda uma criança, Carolina conseguiu afastar o religioso e se esconder atrás de uma árvore até a mãe chegar. “Tive um sentimento ruim e me deu muito medo”, relata.

A menina contou o fato para a mãe, que defendeu a filha e discutiu com o padre. No entanto, a mulher não pôde fazer muito. “Ela era uma mulher separada, com três filhos, e o padre era tido como um ‘deus’, o ‘santo do Paraíso’, ninguém acreditaria nela. Depois, ele falou para a minha mãe que tudo era coisa da minha cabeça. Hoje entendo que meu abuso não aconteceu só fisicamente, mas durante todos os outros anos”, conta Carolina. Ela começou a fazer terapia por causa da violência que diz ter sofrido e conta que as pessoas passaram a acreditar nela quando o caso veio à tona, em 2021. “Na época, ele era extremamente próximo da minha família, era tido como um deus, todo mundo confiava nele”, diz ela.

A proximidade do padre com a família também é relatada por outra vítima, de mais de 50 anos, que terá a identidade preservada. Antes dos 10 anos de idade, ela conta já ter sido abusada pelo religioso. Ela afirma que ainda se lembra da época em que o religioso enchia o carro de crianças para levá-las para um passeio  — que na verdade, segundo ela, era uma experiência dolorosa em um local deserto. Um parente da denunciante teria sido amigo do pároco e aberto as portas de casa para um homem em que ele confiava. “Ele se sentava para almoçar com o meu familiar todos os domingos. Foi assim que fui vítima dele. Só tive consciência de que o que aconteceu comigo foi abuso em uma formação de autoconhecimento em 2018. Eu já estava com quase 50 anos. O trauma é muito grande”, diz ela.

A denunciante conta que se lembrou do que aconteceu a vida inteira, mas sem entender tudo o que tinha passado. “Imagina isso uma vida inteira! E ele pratica esses abusos há décadas! Tem uma mulher que narrou ter sido vítima dele na década de 1970. É uma dor que nunca acaba. É preciso muita terapia para dar conta disso”, afirma ela.

Outro lado

A reportagem procurou a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) para falar sobre as investigações acerca do padre, mas não obteve retorno. Em novembro de 2021, a Arquidiocese afirmou que o padre foi removido das atividades inerentes ao ofício pastoral. 

Na ocasião, a Arquidiocese afirmou: “Desde a semana passada, a Comissão Arquidiocesana para a proteção de Crianças, Adolescentes e Vulneráveis da Arquidiocese de Belo Horizonte já está em ação:  diante da denúncia, imediatamente, iniciou trabalho que busca ouvir as autoras desses relatos, um processo de apuração interno que deve caminhar paralelamente, e em colaboração, com o trabalho de instâncias judiciais. Para preservar cada pessoa envolvida, sendo norma da Comissão, os trabalhos ocorrem em sigilo. Por norma canônica de cautela, e enquanto ocorrem as apurações, o padre deixa de exercer seu Ofício Pastoral, até que sejam concluídos os trabalhos da Comissão Arquidiocesana para a proteção de Crianças, Adolescentes e Vulneráveis e das instâncias competentes no caso”, disse o comunicado. No entanto, as mulheres alegam que a Arquidiocese não deu mais qualquer explicação desde esse último comunicado, feito há quase três anos.

Nesta quarta-feira (14 de agosto),  Arquidiocese de Belo Horizonte afirmou que  "a Comissão de Proteção a Menores e Vulneráveis da Arquidiocese de Belo Horizonte, formada por uma equipe multidisciplinar - advogado, psicólogo, assistente social -, realizou o acolhimento, a escuta zelosa e diligente das denunciantes. O processo penal instituído pelo Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte, por meio da Comissão de Proteção a Menores e Vulneráveis, foi concluído seguindo as normas do Vaticano e encaminhado à Roma (Itália). O processo foi analisado pelo Tribunal do Dicastério para Doutrina da Fé, no Vaticano, em Roma (última instância do processo), que confirmou a decisão da Arquidiocese de Belo Horizonte (decreto publicado e divulgado em 2021), determinando o afastamento definitivo de Bernardino Batista dos Santos do ofício sacerdotal".

A reportagem também telefonou para o celular do padre, mas todas as ligações caíram na caixa postal. O espaço segue aberto para manifestação.

Abusos em Minas

Conforme matéria de O TEMPO publicada em setembro do ano passado, Minas Gerais é o segundo Estado com mais padres investigados, denunciados ou condenados nos últimos anos por supostos abusos sexuais contra vulneráveis. 

O estudo revela supostos abusos por nove cléricos católicos contra 23 vítimas em Minas. No total, 108 líderes da igreja católica foram denunciados por atentado violento ao pudor, corrupção de menores e estupro, entre outros crimes contra crianças, adolescentes e pessoas com deficiência em todo país.

O dossiê consta no livro-reportagem escrito pelos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Brag.