Quem vê a foto do casal Clarindo Pereira dos Santos, de 57 anos, e Rosemeire Alves da Silva Santos, de 47, cercado por frutas, legumes e peixes pode até desenhar mentalmente um cenário de fartura. Mas, por trás da imagem, a história é bem diferente. Moradores da comunidade tradicional pesqueira e vazanteira de Canabrava, em Buritizeiro, no Norte de Minas, os dois são sobreviventes da seca e da escassez de recursos cada vez maior. O grupo enfrenta dificuldades para conseguir alimento suficiente para subsistência e venda. Quase metade deles já desistiu de “remar contra a maré” em um rio quase sem peixe e migrou para a cidade. O retrato não diz apenas sobre eles: a insegurança alimentar afeta 26,7% dos lares brasileiros em áreas urbanas e 34,5% das residências em áreas rurais.
O dado é da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao último trimestre de 2023, e contrasta com o desempenho agrícola do país. O Brasil produz alimentos suficientes para atender as necessidades calóricas de 900 milhões de pessoas, ou 11% da população mundial, segundo pesquisa recente do BTG Pactual. Além disso, é o maior exportador do mundo de soja, milho, café, açúcar, carne bovina e carne de frango.
Porém, produção é uma coisa, e abastecimento da população é outra, segundo o representante do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas no Brasil Daniel Balaban. “Não são as grandes empresas do agronegócio, que têm milhares de máquinas, que produzem o que consumimos. Essas grandes empresas enviam os alimentos para o exterior. Os agricultores familiares, cerca de 5 milhões no país, produzem o que consumimos diariamente. Se queremos aumentar a produção, precisamos olhar para a agricultura familiar”, afirma.
Por outro lado, o pequeno produtor rural não tem recurso suficiente para lutar contra a seca do solo, a contaminação e o assoreamento de rios e a alta dos insumos de produção. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), de 2022, mostrou que a fome atinge 21,8% de agricultores familiares e produtores rurais no país. A insegurança alimentar em todos os níveis, incluindo falta de acesso a determinados alimentos, afeta 69,7% deles.
- Pior seca em 40 anos devasta mais da metade das hortas de 491 cidades de MG
- Fome afeta 40% dos moradores de dois dos principais aglomerados de Belo Horizonte
- MG registra crescimento de 63% no número de bebês internados por desnutrição em 10 anos
- Pandemia da Covid-19 acaba e leva com ela doações em BH
Vindo de uma família de pescadores, Clarindo vive ano a ano a dificuldade de se manter com os pescados. “Nós produzimos tudo o que conseguimos na terra, mas nosso carro-chefe é a pescaria. Mas, com o rio São Francisco cada vez mais poluído, várias espécies de peixes nem se reproduzem mais. Nós vivemos do que conseguimos na comunidade, vendemos uma parte e trocamos outra. Mas nossos ganhos só neste ano caíram 60%”, conta. Ele e a mulher insistem, mas 30 das 65 famílias da comunidade já migraram para a cidade. “Nasci na pesca. Meu pai e meu avô viviam disso. Eu ainda acredito na força do rio São Francisco”, enfatiza.
Falta de acesso à água ‘expulsa’ comunidades
“Nesta terra, plantando-se, tudo dá”. A frase, retirada da carta de Pero Vaz de Caminha endereçada ao rei dom Manuel de Portugal, em 1500, quando chegou ao Brasil, era uma descrição certeira de muitas faixas de terras no país. Algo que as condições climáticas extremas, a poluição e o assoreamento dos rios em função de mau uso dos recursos têm alterado em vários locais.
“A minha família, há cerca de dez anos, colhia muita coisa na nossa propriedade. Do nada o rio secou. É uma mistura de problemas: a água ficou contaminada por mineradoras, e a monocultura de eucalipto avançou pela chapada e reduziu a disponibilidade de água”, conta Maria Aparecida Machado Silva, de 49 anos, quilombola da comunidade do Córrego do Rocha, em Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha, e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapada do Norte.
Nos últimos anos, a terra fértil começou a “falhar”. Parte das 54 famílias que moravam na região migrou para outras áreas e, atualmente, sobraram 20. “Mudaram por vários motivos, como a falta de acesso à água e a escolas para os filhos mais velhos”, afirma.
Durante a pandemia, o que salvou o grupo da fome foi a solidariedade. O sindicato conseguiu doações de cestas básicas e garantiu a subsistência do grupo. “Nós, quilombolas, somos assim. Se tivermos que dividir o pouco que temos, fazemos isso. Pensamos em grupo”, diz.
Segundo o frei Gilvander Moreira, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), é preciso força de vontade para vencer a “pressão” de migrar para a cidade. “Grandes propriedades do agronegócio em uma região pressionam os pequenos proprietários. As empresas querem alugar lotes, oferecendo pagamento atrativo para que os proprietários se mudem para a periferia das cidades”, explica.