Dois meses depois do deslizamento de uma pilha de rejeitos e a remoção das 118 famílias de Casquilho de Cima, na cidade de Conceição do Pará, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, os moradores atingidos continuavam sem qualquer estrutura de apoio médico e psicológico. Enquanto isso, as famílias convivem com os impactos na saúde mental causados pelo trauma da situação e, ainda, com o preconceito de pessoas que os acusam de estarem se aproveitando da situação para lucrar em cima da mineradora que causou o acidente.

“Eu ainda sonho com a pilha caindo. Sonho com muita coisa ruim. Eu acordei hoje e pensei: porque isso aconteceu comigo? Já são dois meses e tem muita gente mal, muita criança, idoso. Tem uma amiga minha que era alegre, tem horas que você nem quer ver a pessoa. Você não quer ver as senhoras que moravam lá, por que você vê as pessoas tristes, abaladas, então você prefere evitar. Então, eu não sei se vai voltar ao normal. Eu tive que voltar a tomar medicação”, detalha Sara*, uma das vítimas do acidente. 

A mulher também destaca o estrago causado pelo julgamento que eles vem sofrendo, de pessoas que afirmam que eles estariam tirando proveito da mineradora. “Falam que a gente está reclamando de barriga cheia. Vemos comentários nas redes sociais falando que a gente só quer dinheiro. Ninguém quer dinheiro, todo mundo só quer resolver da melhor maneira possível. Ninguém quer acabar com a empresa, tirar emprego de famílias. Para nós, moradores, a gente só queria estar na casa da gente”, pontua a moradora sem conseguir segurar o choro pela humilhação vivida.

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Paula*, autônoma que vivia há 5 anos na comunidade com o filho, também reclama do julgamento das pessoas. “Falam que somos oportunistas, que estamos levando vantagem. A vontade é falar que a gente troca de lugar com eles, eu fico com sua casa e você vai viver na nossa condição. Nós poderíamos mesmo escolher qualquer outro lugar do mundo para morar, mas ali era tudo que nós tínhamos. Dinheiro nenhum compra a nossa paz. Ele pode trazer conforto, mas não traz de volta a nossa história, a nossa história”, finaliza a moradora. 

O biólogo Guilherme de Sousa Camponêz, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), acredita que o preconceito contra os atingidos, classificado por ele como “absurdo”, vem do grande poder aquisitivo destas empresas, da dependência econômica desta atividade pelas cidades e, ainda, da influência das mineradoras sobre os governos como um todo. 

“É claro que isso influencia a opinião pública. Nós entendemos que é um absurdo a gente ter que abrir mão de direitos, ou permitir violações de direitos humanos, em troca de ter um emprego, de uma economia. Isso gera uma forma de pensar que coloca a empresa, que é uma criminosa, como a vítima. É uma inversão dos valores e a população acaba nem percebendo isso. É uma coisa muito triste e que a gente tem lutado para combater”, completa.

Desde os rompimentos em Mariana e Brumadinho, estudos de diversas instituições ensino confirmam o impacto destes acidentes envolvendo mineradoras e a saúde mental de suas vítimas. Um estudo feito por pesquisadores da Fiocruz Minas e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado em janeiro deste ano, apontou que 10,6% dos adolescentes da área atingida pela barragem da Vale em Brumadinho apresentaram diagnóstico para depressão, número que subiu para 22,3% entre os adultos. O valor representa quase o dobro da média de 10,2% entre os adultos brasileiros segundo  a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019. 

Além disso, 32,7% dos entrevistados com mais de 18 anos relataram diagnóstico de ansiedade ou problemas no sono em 2023. "Esses números mostram a necessidade de avaliar as ações voltadas à saúde mental no município, dada a manutenção de elevada carga de transtornos mentais na população, nos dois anos avaliados. Faz-se necessário priorizar estratégias intersetoriais, considerando a complexidade do problema e as especificidades de cada território", disse, à época, Sérgio Peixoto, coordenador-geral da pesquisa.

Impactos são anteriores ao deslizamento

A trabalhadora autônoma Paula conta que resolveu se mudar para o distrito para morar na casa onde, na infância, passava os fins de semana com os avós e os pais, que já morreram. Segundo ela, os impactos da mineradora na comunidade já ocorriam desde a implantação da empresa no local, há cerca de 20 anos.

Ela lembra que a água do imóvel de sua família era de cisterna, porém, cerca de 5 anos após a chegada da Jaguar, isso mudou quando testes apontaram para a contaminação da água. “Ela (mineradora) foi crescendo aos poucos, movimentando a economia do lugar e, com o tempo, foi afetando não só a água, mas as casas também, com as explosões. Depois, eles foram colocando aquele rejeito empilhado. Não era nada confortável você chegar no seu quintal, querendo ver uma natureza, e se deparar com aquela montanha", lembra a mulher.

Paula vivia com o filho há cinco anos na casa onde passava fins de semana com a família l Alex de Jesus / O TEMPO

A atingida também lembra do forte cheiro de queimado que emanava da mineradora. “Eu nunca soube o que era aquele cheiro de forte de queimado. A ponto de, quando você fechava a casa, a fumaça acumular ali dentro. Eu achava estranho ter alguém queimando mato de madrugada. Uma hora da manhã, quem vai queimar algo? A poeira também era um problema. Nunca tive problema respiratório e, após cinco anos vivendo aqui, hoje eu tenho. Então, o prejuízo não é só material, é a nossa saúde, é o nosso lugar, nosso sossego”, diz.

O professor aposentado do Departamento de Engenharia de Minas da UFMG, Evandro Moraes da Gama, explica que a queima faz parte do processo de extração do ouro, mas que o cheiro forte sentido pelos moradores merece uma análise detalhada. “Não é normal e pode fazer mal à saúde sim”, garante. 

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“Ali (comunidade) era a única coisa que a gente tinha. Eu não tenho outro lugar. Ali estava o investimento de uma vida inteira da minha família, era tudo que a gente tinha. Eram muitos animais, pássaros, muita natureza. Mas acabou, acabou com a nossa história que está ali. Eu estou desesperançosa, porque eu acredito que eles vão voltar para a atividade deles, vão ter lucros milionários, e nós seguiremos sem nosso lar”, lamenta Paula.

Centro de atendimento será inaugurado

Segundo a procuradora-geral de Conceição do Pará, Rafaella Fiúza Borba, um Centro de Atendimento médico para a população atingida, que será totalmente bancado pela própria mineradora, está com a inaugurado marcada para o próximo dia 23 de fevereiro.

“Lá a gente vai ter várias especialidades, como terapeuta ocupacional, psicologia, psiquiatria e uma equipe de enfermagem, além de outros profissionais para atender essas pessoas e crianças, que estão vivendo um trauma muito grande, estão assustados, fora do seu ambiente e de suas casas”, disse. 

Além disso, o município publicou na última semana a portaria 32/2025, que nomeia uma comissão para começar a analisar os impactos ambientais do deslizamento. “A nossa gestão quer estar próxima da população do Casquilho. O nosso desejo é que as coisas caminhem o mais rápido possível para um final feliz para estas famílias. Nenhum de nós sabe o que eles estão sentindo, são pessoas que tiveram suas vidas paradas por conta do acidente, perderam tudo que tinham e, nós, da prefeitura, queremos que eles recuperem tudo e possam recomeçar a vida deles”, finaliza a procuradora-geral. 

Procurada, a Jaguar Mining informou por nota que está realizando trabalhos de estabilização da pilha de rejeitos/estéril e recuperação da Unidade Turmalina. “Todas as ações realizadas são reportadas aos órgãos competentes que estão cientes e acompanham os procedimentos. Os dados das obras são reportados periodicamente ao Comando Unificado de Operações, composto por autoridades federais, estaduais, municipais e integrantes da Jaguar Mining. A empresa informa que está contribuindo com todas as informações solicitadas para apuração das causas da ruptura parcial da pilha de rejeitos/estéril”, escreveu a empresa. 

A mineradora disse ainda que atua em conjunto com as autoridades e que está implementando ações para “minimizar e reparar os impactos causados pelo deslizamento. As operações na mina seguem suspensas desde o ocorrido. Por segurança, o Comando Unificado de Operações definiu que, por tempo indeterminado, o acesso à comunidade de Casquilho de Cima não está autorizado. A empresa lamenta profundamente o incidente e informa que permanece à disposição para esclarecer dúvidas através dos canais de contato: telefone 0800 942 0312 e e-mail casquilho@jaguarmining.com.br”, finaliza.

*Nome fictício usado para proteger a moradora