Alguns anos atrás, Sara* e o marido tomaram uma difícil decisão: deixar uma cidade de 100 mil habitantes, com maior disponibilidade de empregos, para se mudar para um pequeno distrito em busca de mais tranquilidade para criar os quatro filhos com a comida plantada no quintal. O lar escolhido pela família foi a comunidade de Casquilho de Cima, na zona rural de Conceição do Pará, cidade de 5 mil habitantes na região Centro-Oeste de Minas Gerais. Apesar da garantia dos vizinhos de que a existência de uma mineradora logo ao lado não representava risco, a mulher viu o seu sonho desaparecer em poucos minutos no último dia 7 de dezembro, quando ela e a família foram forçados a abandonar a tão buscada paz após o deslizamento na pilha de rejeitos da mineradora de ouro Jaguar Mining, que removeu 288 pessoas de suas casas no pacato vilarejo.
Passados mais de dois meses desde o rompimento, que engoliu parte de cinco casas e um posto de combustíveis, pouco se sabe sobre o que causou o problema e, principalmente, sobre as responsabilidades no episódio. A falta de informação sobre a enorme estrutura acendeu o alerta para a falta de transparência e de uma lei específica acerca das "novas barragens de minério", especialmente em Minas Gerais, onde existem mais de 700 destas “montanhas” feitas com os restos da mineração.
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Para se ter ideia, foi somente no último dia 10 de fevereiro, mais de dois meses após o ocorrido, que a Agência Nacional de Mineração (ANM) divulgou dados referentes à dimensão da pilha e a quantidade de material que se desprendeu dela. Segundo o órgão federal, a pilha da Mina Turmalina tinha cerca de 80 metros de altura no ponto do deslizamento, ocupando uma área de 16,67 hectares. A massa que se desprendeu da estrutura ocupou um espaço de 9,98 hectares, o que corresponde a 60% da dimensão da estrutura. O volume que se movimentou da pilha foi de 661 mil metros cúbicos de rejeitos, cerca de 12% dos quase 5,4 milhões de metros cúbicos depositados pela mineradora até então.
“O Casquilho era uma comunidade tão tranquila. Eu podia dormir com as portas abertas, podia deixar meus filhos em casa, deixar eles brincarem na rua. Tem gente que nasceu ali e não mudaria nunca. As pessoas não entendem, mas você pode dar tudo para essa pessoa, mas, aquele tamborete, aquele ato de sentar na porta de casa e ficar ali, conversando, não existe mais. Não vão devolver nunca. Por mais que eles dêem tudo para a gente, eles nunca vão devolver a nossa tranquilidade. Para mim, o Casquilho não existe mais. Minha rua virou um canteiro de obra, hoje é uma estrada. O parque que tinha ali não vai mais voltar, a mata não vai voltar. Está tudo destruído, nunca vai ser o mesmo lugar”, diz Sara com os olhos cheios d’água.
A mudança repentina na rotina também causa impactos na população atingida. Sara destaca a situação de seus filhos, que, das brincadeiras nas ruas de terra, passaram a ficar na frente das telas, sem poder sair na rua agora que estão alojados em uma casa em uma das ruas mais movimentadas no centro de Pitangui. “Eles não conhecem ninguém aqui. As pessoas conhecidas foram afastadas, né? A gente acha que vai continuar se acompanhando, mas a gente foi afastado, cada para um canto. Mesmo sendo uma moradora que estava lá há pouco tempo, já me afastou das minhas amizades, do meu grupo. Imagina para quem nasceu ali?”, indaga a atingida.
Apesar do estrago irreparável, segundo a moradora da comunidade, muitos dos atingidos estariam sendo “calados” pelo poder aquisitivo da mineradora. “Há um certo medo entre a população. Tanto que têm pessoas agradecendo a mineradora por estar fazendo o que faz (aluguel de casas, pagamento das despesas entre outras medidas de reparação). Mas eu não, eu não me calo”, garantiu. “Em uma reunião, a Jaguar falou que até junho vamos voltar para nossas casas, mas eu não acho que vamos retornar para lá. Já disseram uma vez que era seguro, mas olha o que aconteceu! Mesmo tirando a pilha, a gente não sabe o que tem por baixo do chão. Também não sabemos o que causou esse deslizamento, se houve contaminação do solo. Depois dos estudos que indicaram metais pesados nas crianças de Brumadinho, como vou saber se lá é saudável para plantar, para ter minhas criações?”, questiona a mulher.
A dúvida de Sara é válida, já que, segundo o professor aposentado do Departamento de Engenharia de Minas da UFMG, Evandro Moraes da Gama, a mineração de ouro possui um dos rejeitos mais tóxicos entre os metais explorados. “O ouro é obtido através da hidrometalurgia, que gera rejeitos separados em classe 1 e classe 2. No caso da primeira delas, existe o arsênio, que é uma substância que, se temos um miligrama por litro, a pessoa que tiver contato morre. O arsênio é um veneno, mas ele está incluído no mineral que chama pirita, que é onde o ouro se entrega lá dentro (da mina). Portanto, é necessário moer essa pedra para tirar o ouro. Mas, nesse processo, vai sobrar o arsênio; vai sobrar o enxofre, que também é difícil para a natureza; e, ainda, o cianeto, que vai volatilizar (virar gás)”, detalha o especialista.
Gama lembra que, na década de 70, em Nova Lima, na grande BH, descobriu-se que um rio que cortava o município estava contaminado com arsênio decorrente da mineração de ouro após problemas de saúde na população. “A gente nadava nesta água. A contaminação foi descoberta após a cidade ser o lugar no Brasil onde mais se vendeu dentadura. Criança, adolescente, adulto, todo mundo estava perdendo dente. O arsênio é muito difícil de lidar, pois ele se dissolve muito rápido na água”, lembra o professor aposentado.
Barragem em nível de alerta a poucos metros da pilha
Dentro da mina da Jaguar Mining existe ainda a barragem de Turmalina, que se encontra em “nível de alerta” — patamar que antecede os níveis de emergência, mais críticos. A estrutura, que contém rejeitos com impacto ambiental classificado no mais alto nível, considerado “muito significativo agravado”, abriga os materiais conhecidos como classe I, que incluem arsênio e outros produtos venenosos para humanos e animais.
Passando por descaracterização desde 2021, a barragem com 700 mil metros cúbicos de rejeitos está localizada a apenas 150 metros da pilha. Com isso, caso o deslizamento registrado em dezembro tivesse ocorrido na direção da barragem, poderia ter desencadeado o rompimento da estrutura com toneladas de materiais nocivos à vida.
Diferentemente da pilha, a barragem da empresa tem todas as informações e estudos disponíveis publicamente no site da ANM. Até setembro de 2022, a mancha de inundação da estrutura terminaria no rio Pará, porém, após atualizações decorrentes das obras realizadas na barragem nos últimos dois anos, segundo a Jaguar Mining, o impacto da lama se restringiria a áreas da própria empresa, uma estrada rural e uma grande área verde, sem casas no “caminho” dos rejeitos.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) informou que, baseando-se nas legislações criadas a partir dos desastres de Mariana e Brumadinho, pediu na Justiça que a eventual retomada das operações da pilha da Jaguar Mining – atualmente paralisada – seja condicionada à existência de um relatório técnico, assinado por profissionais da companhia e certificado por equipe técnica de profissionais independentes e especialistas em segurança de barragens, “atestando que foram adotadas todas as medidas necessárias a estancar o carreamento de material, bem como a assegurar a estabilidade e segurança de todas as estruturas integrantes do empreendimento minerário”.
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“O pedido foi, até o momento, acolhido em parte pelo Judiciário, com a paralisação das operações, e o MPMG vem trabalhando para tentar viabilizar que somente haja retomada da utilização da pilha se a segurança para o meio ambiente e a população vier a ser atestada por equipe técnica de profissionais independentes, especialistas em segurança de barragens, na forma da legislação, procedendo-se à desativação se assim não se fizer”, detalhou a 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Pitangui, responsável por acompanhar as ações envolvendo os atingidos de Casquilho de Cima.
Em vistoria realizada na mina no dia do incidente, os promotores foram informados pela empresa que não existia um estudo de ruptura hipotética, plano de ação de emergência ou sirenes para alerta e evacuação da população local. “Por isso, o MPMG pediu – o que foi deferido na decisão liminar – que a empresa seja obrigada elaborar um plano de ação de emergência/plano de contingência ou documento equivalente referente à Pilha Sá Tinoco, observados os preceitos da legislação de regência, especialmente aqueles referentes ao monitoramento da estabilidade da estrutura por instrumentos e sistemas automatizados para alerta de evacuação da população potencialmente atingida (o que inclui instalação de sistema sonoro ou de outra solução tecnológica de maior eficácia em situação de alerta ou emergência)”, concluiu.
Também questionada sobre a situação no município, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) afirmou que realizou, nos últimos três anos, duas fiscalizações na Jaguar Mining, ressaltando ainda que a pilha de rejeitos/estéril da empresa passou pelo processo de licenciamento ambiental. “Sobre o plano para desmobilização das estruturas, a empresa apresentou proposta preliminar à Unidade Regional de Regularização Ambiental da Fundação Estadual do Meio Ambiente Alto São Francisco, que solicitou informações complementares para concluir a análise pelo órgão ambiental. O documento definirá a forma e os locais para a destinação dos rejeitos”, concluiu.
Mineradora diz estar trabalhando na estabilização da pilha
Procurada, a Jaguar Mining informou por nota que está realizando trabalhos de estabilização da pilha de rejeitos/estéril e recuperação da Unidade Turmalina. “Todas as ações realizadas são reportadas aos órgãos competentes que estão cientes e acompanham os procedimentos. Os dados das obras são reportados periodicamente ao Comando Unificado de Operações, composto por autoridades federais, estaduais, municipais e integrantes da Jaguar Mining. A empresa informa que está contribuindo com todas as informações solicitadas para apuração das causas da ruptura parcial da pilha de rejeitos/estéril”, escreveu a empresa.
A mineradora disse ainda que atua em conjunto com as autoridades e que está implementando ações para “minimizar e reparar os impactos causados pelo deslizamento. As operações na mina seguem suspensas desde o ocorrido. Por segurança, o Comando Unificado de Operações definiu que, por tempo indeterminado, o acesso à comunidade de Casquilho de Cima não está autorizado. A empresa lamenta profundamente o incidente e informa que permanece à disposição para esclarecer dúvidas através dos canais de contato: telefone 0800 942 0312 e e-mail casquilho@jaguarmining.com.br”, finaliza.
*Nome fictício usado para proteger a moradora