Pelas ruas estreitas de pedras e ornadas com o colorido dos edifícios barrocos, passado e presente se conectam na histórica cidade de Ouro Preto, uma das primeiras a ser povoada em Minas Gerais. A então Vila Rica, como era chamada no passado, é um dos celeiros culturais do Estado, abrigando elementos da arquitetura, da arte e da fé. Trezentos anos após a chegada dos primeiros habitantes, manifestações que resguardam a memória e a identidade deste povo ainda resistem ao tempo e ao esquecimento. Entre elas, a Procissão do Fogaréu — um rito religioso da Semana Santa que permaneceu “abandonado” por cem anos no município mineiro e agora retoma reunindo diferentes gerações.
"Sabíamos da procissão, só que nunca participamos, nem os nossos pais. Depois de muito estudo, conseguimos entender como era, e o nosso desejo de retomar com este rito teve uma adesão muito grande. Costumo dizer que a Procissão do Fogaréu é uma das tradições mais valiosas que Ouro Preto conseguiu resgatar", relata o empresário Mauro Amorim, de 52 anos, coordenador da Igreja Nossa Senhora das Mercês e Perdões. O templo religioso, erguido em 1742 e onde estão armazenadas algumas peças do escultor mineiro Aleijadinho, é também “guardião” da procissão que retomou após um século no esquecimento. “As vestes que são utilizadas, as tochas e algumas das imagens são mantidas nessa igreja. A comunidade abraçou esse rito, e tem um cuidado muito grande", acrescenta.
O empresário foi ao lado de outros dois religiosos o responsável pela retomada do cortejo em 2019. O rito, no entanto, foi novamente interrompido no ano seguinte por causa da pandemia da Covid-19. A manifestação religiosa voltou às ruas em 2023 quando o período de crise sanitária havia sido controlado por causa da vacinação. “Ouro Preto é uma cidade com uma marca cultural muito forte. As pessoas que vivem aqui ou que visitam sabem dessa relação. É isso que permite a continuidade dessas tradições de geração em geração”, avalia Amorim.
A procissão encena o texto bíblico que narra a perseguição e prisão de Jesus antes da sua morte na cruz. Com túnicas e capuzes pretos, sandálias de couro e tochas de fogo, cerca de cem pessoas marcham pelas ruas ao toque de tambores e matracas. A encenação se mantém fiel ao rito que se tornou tradição no século XVIII. "Depois de dez horas da noite, saiam, nesse dia, os Irmãos da Santa Casa com o rosto coberto e archotes na mão a correr pelas ruas, entrando por uma e saindo apressadamente por outra porta das várias Igrejas abertas até a Matriz de Ouro Preto, onde efetuavam a prisão de Nosso Senhor, que levavam de regresso", narra o livro Igrejas e Irmandades de Ouro Preto, do autor Joaquim Furtado de Menezes, que reúne publicações do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG).
O servidor público Ivair Fabiano Silva, de 55, foi um dos presentes na primeira edição da procissão em sua retomada após um século. Ele saiu às ruas vestido como farricoco - com túnicas e capuzes pretos, além de sandália de couro -, representando os soldados romanos que prenderam Jesus no Monte das Oliveiras, conforme o texto bíblico. "Tudo fica muito bonito. A noite escura, as tochas iluminando as ruas em meio aos casarões gera um contraste muito forte, que emociona. É um teatro, que reúne muitos turistas, mas é também uma experiência de fé, com toda a comunidade", relata.
A manifestação religiosa ainda não possui o registro de patrimônio cultural imaterial de Minas Gerais. A solenidade, no entanto, faz parte da programação do Minas Santa, um programa do governo do Estado criado para divulgar as manifestações religiosas em cidades mineiras. "Ter esse cuidado com essas tradições é fundamental. Daqui a 50 anos, muitos dos que hoje participam, certamente, não irão estar mais, por causa da idade avançada. Eu ainda posso ter essa oportunidade. Então precisamos assumir essa responsabilidade, porque se deixou de acontecer há cem anos, isso pode se repetir se a gente não cuidar", alerta o estudante Rafael Barreto, de 21.
Para além do teatro, a fé
Mais do que simplesmente replicar a história, a procissão do Fogaréu tem também a força de fomentar debates atuais entre os fiéis e turistas que acompanham o cortejo. “Para além da beleza, há uma reflexão sobre a nossa fé: quem nós estamos buscando para condenar atualmente? Mais um inocente, como foi com Jesus?", questiona o servidor público Ivair Fabiano Silva. Para ele, o debate sobre violências direcionadas às minorias toma força quando, na Semana Santa, há o culto a um líder religioso morto injustamente, conforme a crença cristã.
Os questionamentos também fazem parte da "experiência de fé" do estudante Rafael Barreto, que participará de forma direta da procissão pela primeira vez. "Quando encarnamos essa cena de dois mil anos, pensamos em quantas vezes fazemos isso na vida real. Quem é a pessoa que perseguimos e tentamos prender por trazer uma mensagem como a de Jesus? É um momento de refletir sobre aquilo que acreditamos", finaliza.
A procissão
A procissão começa às 23h, logo após a missa da Quinta-feira Santa, que recorda a última ceia de Jesus, quando ele lavou os pés de seus discípulos. O cortejo se concentra em frente à Casa de Tomás Antônio Gonzaga, passa pela praça Antônio Dias e segue até a Igreja de São Francisco de Assis, onde há uma representação da última ceia. "Lá, acontece um diálogo entre o hospedeiro da última ceia com um farricoco", conta o empresário Mauro Amorim, um dos responsáveis pela organização.
O cortejo atravessa a Praça Tiradentes e segue até o antigo Palácio dos Governadores, onde hoje funciona a Escola de Minas – Museu de Mineralogia. No local, os farricocos cercam o prédio e prendem Jesus Cristo. "Neste momento tem o toque de silêncio. A imagem de Jesus é apresentada e presa. É muito emocionante, você percebe pela expressão das pessoas", acrescenta Amorim. A jornada continua, ao som das matracas, tambores e cantos medievais, até o Santuário Nossa Senhora da Conceição, no bairro Antônio Dias, onde a imagem é deixada.