Ao redor do mundo, milhares de pessoas são obrigadas a deixar seu país de origem todos os anos por causa de conflitos armados, perseguições, crises econômicas e violações de direitos humanos. Elas buscam refúgio em outros países, entre eles o Brasil. A venezuelana Andris Josefina é um desses refugiados. Enfermeira de 30 anos, em 2019, aos 24, saiu de Ciudad Bolívar, na Venezuela, rumo a Boa Vista (RR) com o marido em busca de segurança e um futuro melhor para seus dois filhos pequenos (que na época tinham 3 e 9 anos). Há seis anos, a família veio buscar oportunidades em Belo Horizonte. Nesta sexta-feira, 20/06, quando é celebrado o Dia Internacional dos Refugiados, Andris conta para a reportagem de O TEMPO sua história.

“Minha vida antes de fazer as malas para me refugiar no Brasil era cheia de medos e dificuldades, já que meu país se encontra em problemas políticos.(...) Na hora de fazer as malas, colocamos nossos medos, sonhos e principalmente a coragem dentro delas. Nos refugiar foi um passo muito doloroso, porque a gente migra sem saber o que vai encontrar do outro lado do mundo (referindo-se ao Brasil, que faz fronteira com seu país). É difícil, né? Precisei ter muita força para dar segurança aos meus filhos, que eram pequenos, e ao meu marido. Nem todo mundo dá o passo de construir uma vida fora do país nativo, mas naquele momento era a possibilidade de uma vida melhor para eles”, conta ela com a respiração ofegante ao recontar todo o processo de travessia para se refugiar no Brasil.

Andris integra as mais de 123,2 milhões de pessoas que, até o fim de 2024 (quando o dado foi atualizado), foram forçadas a se deslocar em todo o mundo devido a perseguições, conflitos, violência e graves violações de direitos humanos, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Para destacar essa realidade, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Mundial do Refugiado, que neste ano tem o tema “Legado da Esperança: pessoas refugiadas liderando mudanças no Brasil”.

Venezuelanos lideram em pedidos para entrar no Brasil

Entre 2015 e 2024, o Brasil recebeu, segundo a ACNUR, 454.165 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, provenientes de 175 países. As nacionalidades com maior número de pedidos foram venezuelanos (266.862), cubanos (52.488), haitianos (37.283) e angolanos (18.435), somando 82,6% do total. Só em 2024, foram 68.159 pedidos, 16,3% a mais do que em 2023.

Ao final de 2024, o Brasil contabilizava 156.612 pessoas reconhecidas como refugiadas, o que representa um aumento de 9,5% em relação a 2023.


A organização informa que o aumento expressivo de solicitações de refúgio partindo de uma determinada nacionalidade pode ser atribuído a uma combinação de fatores com causas complexas, podendo ou não estar vinculada aos conflitos armados, guerras, perseguições de diferentes naturezas e violações de direitos humanos. "Também existem outras razões, como a busca de oportunidades de trabalho, estudos, trânsito para outros países. Muitas vezes, esses fluxos (migratórios) também são influenciados por redes de apoio (familiares ou amigos que já residem no país de acolhida), pela concessão de mecanismos protetivos (como no caso de vistos humanitários para determinadas nacionalidades e de recortes específicos, como no caso de mulheres e meninas vítimas de mutilação genital),” explica a organização.


Diante desse cenário, o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR Brasil) atua no acolhimento e apoio integral a migrantes e refugiados, oferecendo regularização migratória, apoio jurídico e psicológico, cursos de português e qualificação profissional. Com escritórios em cidades como Brasília, Boa Vista, Manaus e Belo Horizonte, o SJMR destaca que “as principais demandas apresentadas incluem regularização migratória, acesso à saúde, segurança alimentar e inserção no mercado de trabalho”.

Em Minas Gerais, embora faltem dados oficiais, o escritório de Belo Horizonte já realizou cerca de 1.500 atendimentos, evidenciando a demanda local por acolhimento.

Por que o Brasil?

Para a venezuelana Andris, o acesso a documentos como CPF e carteira de trabalho foi decisivo na escolha do Brasil como destino para sua família. “O Brasil, em comparação a outros países, dá essas possibilidades. Com isso, a gente pode trabalhar e ter uma vida melhor”, explica a refugiada. O país, por meio da Lei nº 9.474/1997, implementa desde 1997 o Estatuto dos Refugiados da ONU, que resguarda direitos humanos fundamentais aos refugiados, como acesso a documentos, condição de trabalho e dignidade.


“A escolha de vir para o Brasil também foi pelo fato de ficar mais perto da fronteira. Eu sou de uma cidade chamada Ciudad Bolívar (Venezuela), então fico um pouco mais próximo da fronteira do Brasil com a Venezuela. Essa viagem seria menos custosa, né?", explica Andris.

O ACNUR destaca a importância da continuidade de políticas públicas para garantir o direito e a inclusão não discriminatória de refugiados: “É essencial para garantir que todas as pessoas forçadas a se deslocar tenham suas vozes ouvidas e seus direitos respeitados, independentemente do sexo, idade ou origem." reforça a Organização.

Refugiados em Minas Gerais

Em nota, o Governo de Minas, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), informou que garante suporte a famílias refugiadas sem recursos, com foco no retorno seguro aos municípios de origem.

Para repatriados em situação de vulnerabilidade, a Sedese, em parceria com o Servas, Fecomércio MG e Sesc em Minas, oferece kits de higiene, alimentação, mantas, transporte, hospedagem e articula com prefeituras a recepção segura nas cidades. Em dezembro de 2024, foi firmado um Protocolo de Intenções com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) para qualificar o acolhimento a migrantes no Estado. "Na ocasião, também foi lançado o Guia de Atendimento a Pessoas Migrantes, que orienta os municípios conforme a Política Estadual para Migrantes, Refugiados, Apátridas e Retornados", informa a Sedese por nota.
 

Eventos climáticos também geram refugiados

Mariana Ferreira Torres, mestre e doutoranda em Relações Internacionais pela PUC Minas, aponta que, além dos conflitos geopolíticos, as crises econômicas e os eventos climáticos extremos são fatores que aumentam o número de refugiados. “Conflitos armados, violência, instabilidade econômica, perseguição política e religiosa e eventos climáticos como secas ou enchentes têm forçado milhares de pessoas a deixar seus países em busca de segurança, oportunidades e melhores condições de vida”, explica.

Ela ressalta o papel das potências mundiais e organismos internacionais na proteção dos refugiados, baseados na solidariedade internacional, dignidade humana e justiça global. "As grandes potências têm o poder de mediar conflitos, reassentar refugiados e apoiar financeiramente países que os recebem, mas muitas vezes estão envolvidas em disputas que agravam esses deslocamentos, o que aumenta sua responsabilidade política", avalia a especialista.

Ary Fernando Nascimento, professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, advogado e conselheiro suplente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CONEDH), analisa que os principais desafios humanitários enfrentados por refugiados envolvem o acesso limitado a direitos básicos, como alimentação, saúde, moradia, água potável e educação, especialmente em campos de refúgio superlotados e com infraestrutura precária.

O advogado também chama atenção para a vulnerabilidade de mulheres, crianças e pessoas LGBTQIA+, que são mais expostas à violência e exploração, como abuso sexual, trabalho forçado, tráfico humano e recrutamento por grupos armados (no caso das crianças). "Há barreiras à integração social e econômica (do refugiado), como dificuldade para entrar no mercado de trabalho, reconhecimento de diplomas, xenofobia e discriminação." explica.

Refugiados e migrantes: entenda a diferença

Ary Fernando explica que o migrante é definido como quem se desloca voluntariamente para outro país, por motivos como trabalho, estudo ou reunião familiar, conforme a Lei nº 13.445/2017. Já o refugiado, segundo a Lei nº 9.474/1997, é quem foge de perseguição ou graves violações de direitos humanos e, por isso, não pode ou não quer retornar ao seu país. “A principal diferença é que o migrante escolhe sair; o refugiado é forçado a isso e recebe proteção humanitária”, resume.

Desafios e preconceitos na nova vida


Quando questionada se escolheria deixar a Venezuela em outras circunstâncias, Andris vai direto ao ponto: Claro que não. Se meu país não estivesse enfrentando problemas políticos, com certeza eu estaria lá, com meus laços, minha cultura e meu idioma. Nunca planejei migrar; fazer as malas foi muito doloroso e difícil.” Ela ainda acrescenta que, apesar do Brasil abrir as portas, “não se prepara para acolher essas pessoas”.


A adaptação no novo país inclui também enfrentar preconceitos e o apagamento da identidade cultural. “Na escola do meu filho, pediram para eu parar de falar espanhol dentro de casa. É muito difícil ter que deixar de falar minha língua com meus filhos, ler um livro em espanhol... é muito doloroso”, conta. Ela relata ainda situações de preconceito institucional: “Apresentei meu documento de refúgio em um banco e não aceitaram. Foi frustrante, muito doloroso, porque parece que a gente não tem direito a nada.”

O Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR Brasil) informou que, nos últimos anos, o perfil das pessoas migrantes e refugiadas tem se diversificado, com aumento expressivo da participação feminina, que passou de 10% em 2013 para quase 45% em 2022, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). A instituição destaca o crescimento da presença de mulheres chefes de família, pessoas LGBTIQ+ e migrantes de países como Haiti, Cuba, Costa do Marfim e Paquistão. “A busca por oportunidades econômicas ainda é predominante, mas questões como violência de gênero, perseguições interseccionais e desastres climáticos também se tornaram fatores centrais de deslocamento”, informa o SJMR Brasil.

Recomeço e acolhimento

Seis anos depois de ter pedido refúgio ao Brasil, Andris comemora a maior conquista desde que chegou ao país: estar na universidade. Estudante do quarto período de Serviço Social na PUC Minas, ela reconhece os desafios para se expressar em outra língua e reaprender tudo, mas valoriza o caminho construído. “Tem sido um desafio entrar em sala de aula, reaprender tudo, estudar políticas públicas, me expressar em outra língua... mas também é minha maior vitória”, comemora.

Junto com os estudos, a venezuelana atua como agente de acolhida no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, ajudando os refugiados recém-chegados em Belo Horizonte, se comunicando em três idiomas: espanhol, espanhol em língua de sinais e português. Ela realiza ainda processos de documentação, acesso a direitos e inserção dos refugiados no mercado de trabalho. “É desafiador, mas gratificante. Porque depois (do acolhimento), olho esse imigrante, esse refugiado, com trabalho, com casa, já estudando. Nesse momento de acolher, a gente olha para a frente. A gente dá frutos, e isso é muito lindo. Doloroso, mas é lindo", conclui.

*Estagiária sob supervisão