Um poema da escritora Isadora Arraes define o abandono como destino: “Nasci/ cortaram meu cordão umbilical/ minha mãe me beijou a testa/ me tornei abandonável”. Abandonável – o adjetivo que ninguém deseja para si – acabou atribuído a Nair*, 72, moradora de Belo Horizonte, quando ela menos esperava. A idosa “morou” por 52 dias no leito de um hospital, apesar de ter condições financeiras e família na cidade. Após a alta hospitalar, ninguém apareceu para levá-la para casa. Incapaz de sair sozinha, Nair lá ficou por quase dois meses, até que as autoridades intervieram, em junho deste ano. “Ela fala que é sozinha na vida. É ela por ela”, relata uma amiga que a acolheu, sob anonimato.

O Sistema Único de Saúde (SUS) registra, em média, um caso como o de Nair por semana em unidades de saúde de BH. Dados da prefeitura mostram que, de janeiro a 18 de junho, 23 idosos foram abandonados em leitos após receberem alta hospitalar. Em menos de seis meses, o número praticamente se iguala à média anual registrada de 2022 a 2024 – 24 casos por ano.

“Quando você chega a uma unidade de saúde, são sete, oito idosos abandonados em um único andar. Dá vontade de chorar”, desabafa Lúcia Helena de Paula, coordenadora da casa de acolhimento Recanto Feliz São Francisco de Assis, na região Oeste da capital. Ela vai a hospitais para viabilizar vagas de acolhimento a esses pacientes. “Na última visita, fomos conhecer uma idosa – e lá estavam quatro. Uma me disse: ‘Se ela não for, eu posso ir no lugar?’”.

De fato, O TEMPO apurou que, somente na Santa Casa de BH, 16 idosos “vivem” hoje no hospital. Alguns estão lá há 15 dias; outros, há um ano e seis meses. “Pessoas em situação de rua, com vínculos familiares fragilizados ou inexistentes, ou cujos familiares não conseguem cuidar”, informou a Santa Casa.

No Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro (HMDCC), as hospitalizações de pacientes já com alta são chamadas de “leito social”. Em um dos casos, uma idosa que precisou de dois dias de tratamento continua internada há oito meses. Segundo a diretora executiva da unidade, Cristina Peixoto, a maioria dos pacientes enfrenta “condições financeiras graves”. “Às vezes, o paciente fica acamado. Até ontem, ele era dono da própria vida. Hoje, não tem quem cuide dele”, afirma.

*Nome fictício para preservar a identidade da vítima

Belo Horizonte tem 906 vagas de acolhimento: ‘Insuficiente’

Para o idoso que passa a chamar o hospital de “casa” por falta de opção, uma porta se abre por meio da política de assistência social do município. Em Belo Horizonte, há três caminhos possíveis: a reconexão com a família, que passa a receber apoio da prefeitura; o acolhimento em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI); ou o encaminhamento a uma estrutura de saúde

Este último é o mais difícil de viabilizar, segundo a diretora de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social (Suas), Sandra Ferreira. “O número de idosos que estão em alta hospitalar, mas ainda exigem cuidados de saúde, extrapola a capacidade da rede de assistência social. Nas nossas unidades, não contamos com profissionais como médicos e enfermeiros. Por isso, esses casos se cronificam dentro dos hospitais”, explica.

Conforme a gestora, para dar conta da demanda por acolhimento em uma sociedade cada vez mais idosa, a prefeitura tem parceria com 25 instituições de longa permanência, o que garante em torno de 906 vagas.

As unidades recebem recursos para o pagamento de profissionais, todas as refeições e apoio na gestão. Na avaliação da diretora executiva do Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro, Cristina Peixoto, no entanto, ainda é preciso ampliar a rede.

“O tempo de espera por uma vaga é longo. O número de vagas nas ILPIs não é suficiente, principalmente para uma população vulnerável. A rede de saúde, junto com a assistência social e até o Ministério Público, tem o desafio de conseguir mais parceiros em casas de acolhimento ou unidades de saúde menores, que assumam tratamentos de reabilitação”.

Cristina Peixoto explica que, apesar de o hospital oferecer assistência completa ao idoso, permanecer internado pode desencadear outros tipos de adoecimento, como o de saúde mental. “Há risco de um processo depressivo. O idoso está restrito ao leito, não tem autonomia sobre a própria vida, não pode sair, passear. Isso é negativo”, diz.

Os idosos acolhidos têm sua vontade respeitada e são acompanhados durante todo o processo, diz Sandra Ferreira. Ela afirma que um novo modelo está em estudo para enfrentar o problema do abandono com apoio de várias áreas.

Problema mobiliza MP, instituições e conselho

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) tem feito reuniões mensais com membros de hospitais, de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) e de conselhos de idosos. Em 24 de junho, o tema foi um suposto “colapso” provocado por pacientes esquecidos em leitos. “O objetivo é verificar a viabilidade de equipamentos híbridos e hospitais de transição, de forma a promover a desospitalização progressiva”, diz o MPMG.

A coordenadora do Recanto Feliz São Francisco de Assis, Lúcia Helena de Paula, relata ter participado do encontro. “Cada hospital fará um levantamento dos leitos sociais e dos custos para mantê-los. Como gestora com 21 anos de atuação, nunca vi uma cena tão assustadora quanto essa. Esses idosos abandonados clamam por vida”, alerta.