A taxa de escolarização de crianças de 0 a 3 anos em Minas Gerais está abaixo da média nacional. Enquanto no país o índice é de 39%, no estado é de 34%. Além disso, o estado tem a segunda maior fila de espera por vagas no Brasil. Dados do estudo Retrato da Educação Infantil no Brasil, divulgado pelo Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe) mostram que São Paulo lidera a lista de crianças esperando por uma vaga em creche (88.854), seguido por Minas Gerais (63.470), Paraná (59.373), Pará (48.5820) e Rio de Janeiro (39.327).

Essa realidade mostra um quadro preocupante, de acordo com especialistas. A falta de frequência na creche significa não somente uma falta de apoio a mães e pais que precisam trabalhar e não têm com quem deixar os filhos, mas pode representar uma deficiência na educação, com impactos no presente e no futuro. Essa é a segunda reportagem da série “Acesso negado”. Ontem, O TEMPO mostrou que 55 cidades mineiras não têm creches públicas para crianças de 0 a 3 anos

A promotora Giselle Ribeiro de Oliveira, coordenadora do CAO-Educ, destaca que os “três primeiros anos de vida de uma criança são cruciais para o desenvolvimento cerebral”. Nesse sentido, “crianças que frequentam creches têm mais possibilidade de ter sucesso na alfabetização, na leitura e na matemática". Segundo ela, crianças que estão fora da creche podem apresentar atrasos na linguagem, dificuldade de socialização e até menor desenvolvimento de habilidades emocionais.

“É importante a gente entender que a creche não é só um espaço de educação, é um espaço de cuidado, é um ambiente de estímulo para um desenvolvimento integral dessas crianças”, acrescenta. Ela também chama atenção para a desigualdade entre classes sociais, já que a dificuldade de acesso às creches públicas pode agravar ciclos de pobreza. “Das crianças atendidas por creche, a maioria é de renda maior. As faixas mais baixas não têm acesso à creche e provavelmente nunca vão conseguir sair daquela classe mais baixa econômica, porque justamente, ficou no ciclo vicioso”, completa.

Na cidade de Caranaíba, no Campo das Vertentes, Daniel, de 8 anos, é uma das crianças que ingressou no ensino fundamental sem ter frequentado a creche. O município é um dos 55 de Minas Gerais que não possui as unidades de educação infantil, embora 6% da população seja composta por crianças de 0 a 6 anos — 184, de um total de 2.933 habitantes, segundo o Censo IBGE 2022. A mãe, Ângela Aparecida das Graças, de 45 anos, conta que o menino aprendeu a ler na escola regular, mas ainda está em processo de alfabetização, especialmente na escrita. Uma etapa do aprendizado normalmente atingida por crianças cerca de dois anos mais novas. “Ele ainda está aprendendo a escrever as palavras certas”, conta.

Ângela é mãe de quatro filhos. Além de Daniel, de 8 anos, ela também cuida de Luiz Gustavo, de 10, João Inácio, de 13, e Isabelle, que completou 18. Após se separar do marido, a família passou a viver em um porão. Como os meninos mais novos têm uma série de problemas de saúde, a ausência de uma creche na cidade pesou especialmente nos momentos em que ela precisava se deslocar com um dos filhos para outras cidades, como Belo Horizonte e Barbacena, para atendimento médico. “Eu já fico só por conta dos meninos, não consigo trabalhar. João Inácio fez nove cirurgias e tem uma complicação nos rins. Então, quando Daniel era menor, se tivesse uma creche, ele ficaria aprendendo enquanto eu levava o irmão ao hospital. Quando eu não consigo, minha mãe cuida, mas ela é idosa e fica quase o tempo todo deitada”, desabafa.

A renda da família depende de um benefício socioassistencial de um salário mínimo por mês e de doações da comunidade. Por isso, para Ângela, pagar por uma creche ou por um serviço de babá nunca foi uma opção. O consequente atraso na educação e na socialização dos filhos torna-se, então, um fado inevitável. “Quando eles eram menores, cheguei a pensar em me mudar para Santana dos Montes, que é cidade vizinha e tem creche, mas não é simples assim”, diz a mãe.

Formação

Esse atraso para começar na escola tem seu peso. Conselheira nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Ângela Mathylde afirma que as creches são muito importantes para a formação das crianças. De acordo com ela, a pedagogia tem a condição de “alfabetizar antes da letra” e é a base de tudo. 

“As creches são janelas de oportunidades. A criança, nessa fase, está em um momento em que aprende por observação. Além disso, é lá onde se trabalha a individualidade, a singularidade e a percepção de cada uma delas”, afirma Ângela. A especialista destaca que as crianças aprendem a socializar nas creches, além de brincarem no local, o que também é essencial para a formação.

“O brincar é fundamental. Não é passatempo, é método. O  faz de conta organiza o caos interno, ajuda a resolver conflitos e faz com que as crianças experimentem papéis sociais como de pai, mãe, professores. Além disso, as creches trabalham o ‘não’ o ‘sim’, o que se pode fazer em determinado momento”, diz.

A conselheira nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia acrescenta que a educação bem trabalhada na infância evita transtornos mentais e de desenvolvimento no adulto. “O educador atua como uma espécie de suporte para o futuro. O que é bem trabalhado na infância ajuda a formar um adulto bem estruturado. Muitas crianças têm vida social apenas na creche, que é uma antecipadora dos mundos possíveis e de como lidar com eles”, diz ela.

A especialista defende que as crianças não podem ter essa oportunidade retirada delas. “Quando não há essa formação, elas podem ter outra percepção do mundo, mais dificuldades para lidar com a frustração e com os problemas. É nesse momento na creche que há um processo de estímulo, da função executiva, de autorregulação emocional, desenvolvimento da linguagem, empatia e criatividade”, finaliza.

O que dizem os governos sobre o problema? 

Procurada, a prefeitura de Caranaíba não havia respondido até o fechamento desta edição. A Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG) informou que, conforme a Constituição Federal, a gestão da educação infantil é responsabilidade dos municípios, mas “mantém uma atuação cooperativa com as administrações municipais, incluindo repasse de recursos”. Desde 2021, segundo a pasta, R$ 1,2 bilhão foi destinado a 163 municípios para a construção de 194 escolas e creches, além da realização de reformas, compra de mobiliário e equipamentos.

Já o Ministério da Educação (MEC) informou que executa o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) voltado à construção de creches e pré-escolas, “beneficiando cerca de 110,6 mil crianças em 1.177 municípios” em todo o país. Além disso, destacou que Minas tem 117 obras incluídas no Pacto Nacional pela Retomada de Obras da Educação Básica, iniciado em 2023, com conclusão prevista para 2025.