Os moradores da comunidade de Santa Quitéria, que é ameaçada por uma pilha de rejeitos de minério da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Congonhas, na região Central de Minas Gerais, conseguiram uma primeira vitória na defesa contra a desapropriação promovida pela mineradora. Após a pressão feita pela população, a Fundação Palmares publicou na manhã desta sexta-feira (18 de julho) uma portaria que reconhece o povoado como remanescente de quilombo. 

A reportagem de O TEMPO teve acesso à portaria nº 187, assinada pelo presidente da instituição federal, João Jorge Santos, que certificou que a comunidade se autodefiniu como remanescente de quilombo, instituindo assim um processo administrativo. "Fica autorizado o registro da presente certificação no Livro de Cadastro Geral (...) Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação", completa a publicação oficial.

O caso ganhou repercussão após a CSN obter, na Justiça, o direito de remover de uma casa quase centenária na zona rural do município mineiro um casal de idosos, seu João, 74, e dona Geralda, 66. A imissão de posse foi cumprida nesta semana, levando o idoso a passar mal e precisar de atendimento médico. 

A pilha de rejeitos filtrados ficará localizada, de acordo com a própria empresa, a cerca de 1 km de distância da comunidade, agora, reconhecida formalmente como remanescente de quilombo. O processo de reconhecimento transcorria há oito anos, segundo a líder comunitária Aline Soares. Entretanto, em meio à luta para barrar a desapropriação de seu João e dona Geralda, o reconhecimento se tornou ainda mais urgente, já que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) exige consulta livre, prévia e informada a povos e comunidades tradicionais que possam ser afetados por grandes empreendimentos. 

O reconhecimento foi comemorado pelos moradores e por políticos que ajudaram a dar voz à população ameaçada pela mineradora. A líder comunitária Aline Soares celebrou a informação. "Oficialmente somos uma comunidade Quilombola! Louvado seja Deus, louvado seja Santa Quitéria. Gratidão aos nossos ancestrais. Estou muito feliz, pois este foi foi um grande passo", disse a moradora do povoado que participou do processo de reconhecimento.

A deputada federal Duda Salabert (PDT) destacou que o reconhecimento é fruto, entre outras coisas, de reunião promovida com a Fundação Federal na última terça-feira (15), mesmo dia que a mineradora foi até a casa dos idoso para cumprir a imissão de posse. 

"Celebramos com orgulho a vitória do povo quilombola de Santa Quitéria. Após nosso mandato fazer um trabalho firme e coletivo construído com a comunidade, ministérios e órgãos do governo Federal, conseguimos a certificação da Fundação Palmares. Santa Quitéria agora é oficialmente reconhecida como comunidade tradicional quilombola. Essa conquista abre caminho para vencermos o decreto de Zema e garantir a preservação do território. É uma vitória da memória, da justiça e do patrimônio de Minas Gerais”, disse a parlamentar. 

Estruturas ficarão a poucos metros de igreja e escola

As áreas que são almejadas pela CSN foram incluídas, em julho de 2024, em um decreto publicado pelo governador Romeu Zema (Novo). A medida previa a desapropriação de uma área de 261 hectares, considerada de "interesse público", para a implantação da pilha de rejeito filtrado da mineradora. Desde então, a população da pequena comunidade, que totaliza cerca de 400 moradores, convivia com a incerteza sobre quais imóveis seriam alvo do processo, até que, em julho deste ano, a Prefeitura de Congonhas divulgou o mapa com a área pretendida pela CSN. 

Levantamento feito por O TEMPO com base no mapa divulgado pela CSN ao município mostra que, apesar da alegação da mineradora de que a pilha em si ficará localizada a cerca de 1,3 km da comunidade tradicional, a área que será ocupada pela empresa estará a pouco mais de 200 metros da capela do século XVIII com resquícios de construções feitas por escravizados e a 26 metros da escola municipal da comunidade. 

 

Mapa mostra áreas pretendidas pela CSN, que estão bem próximas da comunidade l Editoria de Arte / O TEMPO

História viva 

Entre os moradores mais antigos de Santa Quitéria está Paulo Soares, de 76 anos. Nascido e criado na comunidade, ele carrega em si não apenas a memória da terra, mas, também, a herança ancestral de um povo que sobreviveu à escravidão. Neto e bisneto de pessoas escravizadas, ele lembra da infância, em uma casinha de sapé, onde o pai contava as histórias sobre a época da escravidão. 

“Ele (pai) falava que o povo passava muita dificuldade, era muito mandado, né, muito humilhado. Eu mesmo ainda fui muito humilhado. Comecei a trabalhar com 12 anos, trabalhava com minha mãe, ajudava ela a capinar arroz. Depois que meu pai morreu, passamos muita dificuldade, tinha dia que minha mãe ia ao canavial, do outro lado do rio, buscava a cana, descascava, picava em pedacinho, punha numa bacia e dava pra gente comer. Nós nos juntávamos ao redor assim e chupávamos. Passávamos dois, três dias sem comer (outro alimento), só comendo cana”, lembra o idoso sem alterar o semblante embrutecido pela vida. 

As estruturas da empresa ainda ficarão a cerca de 15 metros do cemitério local e a menos de 400 metros da Unidade Básica de Saúde (UBS). Além disso, o rio Paraopeba, já impactado pelo rompimento da barragem em Brumadinho, está a aproximadamente 100 metros do espaço a ser ocupado pela mineradora para a implantação da pilha.  

 

Aos 76 anos, seu Paulo lembra da infância dura e das histórias dos tempos da escravidão contadas pelo pai l Flávio Tavares / O Tempo

Além de guardião da memória da comunidade, Paulo também é um dos participantes mais antigos da Folia de Reis local, tradição centenária mantida viva por grupos da zona rural de Congonhas. Todos os anos, entre dezembro e janeiro, ele ajuda a organizar cortejos que passam de casa em casa com bandeiras, músicas e versos que celebram o menino Jesus, Santa Quitéria e São Sebastião.

“Nas casas, a gente ia e cantava oferta, deixava os instrumentos e cantava pedindo pousada para a bandeira. No outro dia, a gente voltava, agradecia e saía para outra casa. E assim ia até dia 20 de janeiro. Antigamente, tinha as pessoas que gostavam mesmo, que saíam e tocavam por amor. A maioria que ainda faz, vai aos ensaios, faz isso por amor. Nós estamos mantendo viva a tradição. Mas todo ano ainda fazemos uma festa, o Encontro de Folias de Santa Quitéria, esse ano vai ser dia 22 de novembro”, convida o idoso. 

Relembre o caso

João, 74, e Geralda, 66, vivem dias de tensão desde que a Justiça autorizou a desapropriação da casa da família, construída há quase um século no distrito de Santa Quitéria, em Congonhas. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) quer instalar no local uma pilha de rejeitos — antes mesmo do licenciamento ambiental ser aprovado.

A casa, cercada por nascentes e árvores nativas, é um símbolo da comunidade. Ali, as netas nadaram em piscina natural, o fubá era moído em pedra pelo avô e o forno de barro guardava o cheiro dos biscoitos da matriarca. “A gente não tem apego a luxo, tem apego à memória”, disse dona Geralda em entrevista a O TEMPO.

Na última terça-feira (15/7), oficiais de Justiça, seguranças e funcionários da CSN foram ao local com placas e correntes para o portão. Recuaram após o senhor João passar mal. O idoso, acostumado com a rotina tranquila na casa da família, hoje toma remédios para depressão e ansiedade.

A desapropriação foi autorizada por decreto do governador Romeu Zema (Novo). Segundo a CSN, 27 dos 30 imóveis já foram adquiridos de forma amigável. Segundo os moradores, a judicialização ocorreu porque a casa da família é uma das poucas na região com documentação regular.