CONGONHAS - A pilha de rejeitos de minério que a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) pretende instalar em uma área verde e que pode levar à desapropriação de um casal de idosos de uma casa secular na zona rural de Congonhas, na região Central de Minas Gerais, ficará localizada, de acordo com a própria empresa, a cerca de 1 km de distância da comunidade de Santa Quitéria, que passa pelo processo de reconhecimento como remanescente de quilombo. Em meio ao avanço da mineradora, cerca de 400 moradores do pacato vilarejo convivem com medo, incertezas e um sentimento de invisibilidade, enquanto parte do território e de sua história ancestral pode acabar encoberta pelos restos da mineração, com o aval do governo de Minas.
Líder comunitária de Santa Quitéria há 15 anos, Aline Soares, é a responsável pelos trâmites do reconhecimento do território como remanescente de quilombo. O processo se iniciou há cerca de 8 anos, após serem identificados vestígios de construções feitas por pessoas escravizadas nas paredes da capela local, hoje já tombada como patrimônio. Desde então, ela e outros moradores têm reunido registros históricos, fotografias e documentos religiosos em busca de comprovar a ancestralidade negra da comunidade.
“Quando fomos fazer o reconhecimento para tombar a capela, a antropóloga veio tirar as medidas das paredes de pedra e, a partir desse indício de que foi construída por escravos, surgiu em mim essa vontade de procurar a origem da nossa família. Só que eu não entendia muito dessas coisas, mas fui juntando fotos e outras evidências. Até que, há uns 2 anos atrás, encontrei outro morador, que é historiador, e a gente começou esse processo. Agora, conseguimos encontrar com a igreja registros de batismos de filhos de escravizados aqui”, conta a moradora.
Atualmente, em meio à luta para barrar a desapropriação de seu João e dona Geralda, o reconhecimento da comunidade se torna ainda mais urgente, já que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) exige consulta livre, prévia e informada a povos e comunidades tradicionais que possam ser afetados por grandes empreendimentos.
O advogado da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’Golo), Matheus Mendonça Gonçalves Leite, conta que a entidade já mapeou 1.043 comunidades quilombolas no Estado e que Santa Quitéria é uma delas. “Infelizmente, ela ainda não está certificada pela Fundação Palmares. Porém, diante dessa ameaça da mineradora, a N’Golo tomou três medidas. A primeira foi um ofício enviado à fundação, pedindo prioridade no reconhecimento. Também ajuizamos uma ação na Justiça Federal para anular o decreto de desapropriação do governo de Minas e, por fim, vamos entrar com um recurso no TJMG contra a imissão de posse da propriedade do seu João e da dona Geralda”, garantiu o advogado da entidade.
Entre os moradores mais antigos de Santa Quitéria está Paulo Soares, de 76 anos. Nascido e criado na comunidade, ele carrega em si não apenas a memória da terra, mas, também, a herança ancestral de um povo que sobreviveu à escravidão. Neto e bisneto de pessoas escravizadas, ele conta um pouco da história relatada por seus antepassados sobre a origem do povoado.
“Tinha um rapaz que trabalhava em uma fazenda aqui e o patrão dele pagou outro para cercar ele no mato e matar ele. Ele rezou para nossa senhora Santa Quitéria e o braço do cara endureceu. Por isso ficou o nome”, conta com orgulho. Seu Paulo lembra ainda da infância, em uma casinha de sapé, onde o pai contava as histórias sobre a época da escravidão.
“Ele (pai) falava que o povo passava muita dificuldade, era muito mandado, né, muito humilhado. Eu mesmo ainda fui muito humilhado. Comecei a trabalhar com 12 anos, trabalhava com minha mãe, ajudava ela a capinar arroz. Depois que meu pai morreu, passamos muita dificuldade, tinha dia que minha mãe ia ao canavial, do outro lado do rio, buscava a cana, descascava, picava em pedacinho, punha numa bacia e dava pra gente comer. Nós nos juntávamos ao redor assim e chupávamos. Passávamos dois, três dias sem comer (outro alimento), só comendo cana”, lembra o idoso sem alterar o semblante embrutecido pela vida.
Além de guardião da memória da comunidade, Paulo também é um dos participantes mais antigos da Folia de Reis local, tradição centenária mantida viva por grupos da zona rural de Congonhas. Todos os anos, entre dezembro e janeiro, ele ajuda a organizar cortejos que passam de casa em casa com bandeiras, músicas e versos que celebram o menino Jesus, Santa Quitéria e São Sebastião.
“Nas casas, a gente ia e cantava oferta, deixava os instrumentos e cantava pedindo pousada para a bandeira. No outro dia, a gente voltava, agradecia e saía para outra casa. E assim ia até dia 20 de janeiro. Antigamente, tinha as pessoas que gostavam mesmo, que saíam e tocavam por amor. A maioria que ainda faz, vai aos ensaios, faz isso por amor. Nós estamos mantendo viva a tradição. Mas todo ano ainda fazemos uma festa, o Encontro de Folias de Santa Quitéria, esse ano vai ser dia 22 de novembro”, convida o idoso.
A Fundação Palmares e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) foram procurados sobre a situação envolvendo a comunidade quilombola e os riscos ao meio ambiente, mas, até o fechamento da reportagem, os órgãos federais ainda não haviam se manifestado.
Estruturas ficarão a poucos metros de igreja, escola e rios
As áreas que são almejadas pela CSN foram incluídas, em julho de 2024, em um decreto publicado pelo governador Romeu Zema (Novo). A medida previa a desapropriação de uma área de 261 hectares, considerada de "interesse público", para a implantação da pilha de rejeito filtrado da mineradora. Desde então, a população da pequena comunidade, que totaliza cerca de 400 moradores, convivia com a incerteza sobre quais imóveis seriam alvo do processo, até que, em julho deste ano, a Prefeitura de Congonhas divulgou o mapa com a área pretendida pela CSN.
Levantamento feito por O TEMPO com base no mapa divulgado pela CSN ao município mostra que, apesar da alegação da mineradora de que a pilha em si ficará localizada a cerca de 1,3 km da comunidade tradicional, a área que será ocupada pela empresa estará a pouco mais de 200 metros da capela do século XVIII com resquícios de construções feitas por escravizados e a 26 metros da escola municipal da comunidade.
As estruturas da empresa ainda ficarão a cerca de 15 metros do cemitério local e a menos de 400 metros da Unidade Básica de Saúde (UBS). Além disso, o rio Paraopeba, já impactado pelo rompimento da barragem em Brumadinho, está a aproximadamente 100 metros do espaço a ser ocupado pela mineradora para a implantação da pilha.
Apesar de não prever a remoção da comunidade quilombola, o projeto da mineradora CSN preocupa também por sua proximidade, já que, ainda em 2025, um estudo feito pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-MG) apontou para sérios impactos na saúde da população de municípios mineradores. Segundo o levantamento, cidades com essa indústria gastam 40% mais com saúde, registrando índices alarmantes, como, por exemplo, uma mortalidade 60% maior por doenças circulatórias e gastos 36% maiores com problemas respiratórios.
A deputada federal Duda Salabert (PDT), que denunciou a ameaça da mineradora contra a comunidade tradicional em suas redes sociais, conta que, recentemente, mediou uma reunião entre os moradores da região e o governo Federal. “O Ministério do Meio Ambiente vê no reconhecimento do território como quilombola um caminho para proteger a história e os direitos das famílias. Sabemos que esse processo poderia estar mais avançado. Seguiremos em diálogo com o ministério e com a Fundação Palmares para garantir que a medida aconteça a tempo de salvar Santa Quitéria das garras da CSN”, disse a parlamentar.
Medo é que comunidade vire “fantasma”, como bairro Plataforma
Membro-fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Congonhas (IHGC), Sandoval Pinto Filho é um dos ativistas que ajuda na mobilização em defesa da comunidade de Santa Quitéria. Ele conta que o principal temor é que o avanço da mineradora faça com o povoado o mesmo que fez no antigo bairro Plataforma, localizado a poucos quilômetros dali e que acabou transformado em um “bairro fantasma”, há cerca de 15 anos, para a implantação de uma planta industrial que nunca se concretizou.
“Lá (no bairro) não teve desapropriação, mas teve negociação direta, foram comprando as casas, demoliram tudo e construíram um outro bairro, transferiu o pessoal sem cuidado nenhum, e deixaram alguns poucos moradores isolados em meio aos escombros. A impressão que temos é que estão fazendo a mesma coisa aqui, se tirarem o seu João daqui, vão empurrando o povo de Santa Quitéria”, denuncia.
O temor de Sandoval é compartilhado pela líder comunitária Aline Soares. “A Plataforma era uma comunidade unida, tinha festa religiosa, festa junina, um campo de futebol. Agora, a igreja que tinha lá virou um canil. Eu até chorei quando soube disso, colocar cachorros em cima de um pedaço que era sagrado. Muitos dos moradores que foram removidos para o novo bairro morreram de desgosto”, diz.
O TEMPO foi até o bairro na última sexta-feira (11 de julho), onde conversou com a moradora de uma das últimas casas de pé em meio aos escombros do antigo bairro, Gisele Santana, de 39 anos. “A CSN destruiu famílias com esse assédio imobiliário. Várias famílias foram destruídas, porque envolve dinheiro, né? Acabou com o sentido de comunidade, para ter ideia, a nova associação foi feita em 2022, ficaram quase 10 anos sem uma. Nós ganhamos uma casa lá, mas, até hoje não temos sequer documento e, agora, o bairro Plataforma também vai virar uma pilha de rejeitos”, aponta Gisele com firmeza.
Segundo ela, os moradores de Santa Quitéria devem lutar para que não aconteça com eles o mesmo que ocorreu ali. “A gente tinha uma comunidade, tinha horta. O pessoal saía para pescar, buscar lenha e viver em um lugar tranquilo. Hoje, no novo bairro, todo mundo vive sobre concreto. Para quem é mais novo, como eu, é tranquilo. A gente tem a vida mais corrida, trabalha fora. Mas para o meu pai, meus tios, os senhores mais idosos que agora moram lá, ficar preso dentro de uma casa é angustiante. Na época, muitos não pensaram nisso, acharam que iam ganhar dinheiro, mas, hoje, vemos que perdemos uma comunidade para a ganância”, finaliza a moradora.
O que diz a mineradora?
Questionada sobre os impactos na comunidade e nos rios Paraopeba e Maranhão, que também passam pelo pequeno distrito, a CSN negou que haverá impacto para a comunidade remanescente de quilombo. Segundo a empresa, “toda a área do projeto está localizada em zona rural e fora dos limites dessas comunidades”.
“A CSN Mineração esclarece que não haverá impacto sobre nenhuma comunidade em processo de reconhecimento como quilombola, nem sobre qualquer outra comunidade, uma vez que toda a área do projeto está localizada em zona rural e fora dos limites dessas comunidades. O bairro Santa Quitéria está fora da área destinada ao projeto e mais de 1,3 km distante da base projetada da pilha de rejeitos. O bairro não terá os seus acessos impactados. As duas áreas — a pilha e a comunidade — serão, inclusive, separadas por extensa área de amortecimento, estradas e cortinas arbóreas”, escreveu.
Já sobre os possíveis impactos nos corpos d’água que cortam a região, e estarão localizados a poucos metros da área a ser ocupada pela empresa, a mineradora disse não existir riscos, uma vez que está prevista uma distância superior a 1,3 km da estrutura. “Além disso, serão implantados sistemas de drenagem e contenção, validados por estudos de engenharia, que impedirão o carreamento de quaisquer materiais para os cursos d’água”, completou.
A mineradora alegou ainda que o atraso na regularização do novo bairro Plataforma se deve, especialmente, à “impossibilidade de concluir as permutas devido a problemas documentais das propriedades originárias a serem permutadas, além de entraves burocráticos relacionados à regularização do novo loteamento”. A empresa disse também que conta uma equipe de profissionais dedicada exclusivamente ao processo e que a expectativa é que as primeiras escrituras sejam entregues ainda em julho.