Circulam pelas redes sociais vídeos que mostram Renê da Silva Nogueira Júnior, de 47 anos, suspeito de matar o gari Laudemir de Souza Fagundes, de 44 anos, chegando sem algemas e no banco de trás da viatura da Polícia Militar no Departamento Estadual de Investigação de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). A situação gerou a revolta de internautas, que questionavam o fato de ele não estar algemado e no compartimento de presos, como ocorre em outras situações. Ao deixar a delegacia rumo ao Ceresp Gameleira, já autuado por homicídio duplamente qualificado e por ameaça, ele saiu algemado e no compartimento de preso.
Segundo a legislação e a jurisprudência vigente, o uso de algemas, apesar de às vezes parecer ser a regra, é a exceção. “Em primeiro lugar é preciso ficar claro que entre os princípios constitucionais que regem a legislação brasileira, estão o princípio da não culpabilidade, o princípio da dignidade humana e o princípio da presunção de inocência. Essas são garantias que todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país têm, para assegurar o tratamento humanitário do cidadão e preservar a sua dignidade. Ou seja, mesmo se tratando de um crime gravíssimo que cause comoção social, essa justificativa, por si só, não é suficiente para autorizar o uso de algemas”, disse Fernanda Jatobá, advogada criminalista, especialista em Direito Penal e Processo Penal, fundadora do escritório Jatobá Advogados.
Para a advogada, a legislação brasileira é “muito fragmentada e escassa” em relação à regulamentação do uso de algemas. “O artigo 284 do Código de Processo Penal (CPP) não trata especificamente sobre o uso de algemas, mas determina que o uso de força só seja utilizado excepcionalmente, enquanto o artigo 474, §3º, do CPP só trata da proibição no plenário do júri, com exceções. O que de fato sustenta o tema atualmente é a jurisprudência do STF e do STJ e a Súmula Vinculante nº 11 do STF, que diz o seguinte: só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”, explica.
Fernanda Jatobá disse que os precedentes do STF “deixam claro que o uso de algemas de forma corriqueira é ilegal”. “No caso do gari, se não houve resistência, risco de fuga ou ameaça à integridade física, de fato não caberia o uso de algemas tampouco o transporte no compartimento de cela da viatura. Inclusive o transporte no banco traseiro, e não no compartimento de cela, pode ocorrer por avaliação operacional da equipe, disponibilidade de viaturas e ausência de risco, de modo que é procedimento admissível e inclusive esperado, regular e legal. Claro que, o procedimento pode variar de acordo com avaliação da guarnição e da situação concreta. Então, não se trata de tratamento privilegiado, é apenas a aplicação concreta do que está previsto em lei e na súmula. O fato é que a guarnição não poderia justificar o uso de algemas pelo clamor social, justamente porque o uso de algemas é medida excepcional que exige as fundamentações já estabelecidas pelo judiciário”, finaliza.
Para Ludmila Ribeiro, professora no Departamento de Sociologia e pesquisadora no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), o suspeito só deve ser algemado quando apresenta risco para si ou para a corporação. Ela pondera, contudo, que ”a grande questão é que em 90% dos casos, pessoas negras e pobres são algemadas como forma do policial mostrar autoridade e mostrar ‘quem manda’”. A situação, segundo ela, costuma mudar quando o abordado é uma pessoa mais escolarizada e branca.
“Eu acho que tem duas questões importantes. A primeira é que quando é a pessoa é apresentada algemada, ali já é como se fosse condenada, como se fosse uma pessoa perigosa, bandido que precisa ser contido. Nesse caso do gari isso gera revolta porque o suspeito em um primeiro momento é uma pessoa violenta. E isso também reforça o estereótipo facial. Em teoria, todos os casos deveriam ser tratados de forma equivalente, mas claro, pesquisas mostram que em casos midiáticos há uma maior preocupação de seguir tudo à risca, o que ficou evidente ao não usar a algema e proteger a identidade do suspeito. Há uma pressão também para não demorar, que tenha uma resposta pública no menor espaço de tempo. Quando não tem repercussão, o que a gente vê é que é a flexibilização dos princípios legais, que acreditam que estão lidando com população criminosa, e também maior atraso, demora na condução dos procedimentos”, pontuou.
A reportagem procurou a Polícia Militar, que não quis se manifestar. Um militar ouvido de forma anônima pela reportagem, contudo, reafirmou que caberá ao policial decidir se usa ou não a algema, mas que se o preso estiver cooperativo e possibilidade reduzida de fuga, “não tem problema nenhum levar o preso na viatura”. “Mas se você for em um lugar tipo em um aglomerado, é frequente você ter tentativa de fuga, da pessoa ser reincidente, clamor da população querendo jogar pedra na viatura, então isso aí acaba que quase vira uma regra você carregar o preso no xadrez. Mas, na verdade, o uso de algema é uma exceção. Se o preso estiver de boa, pode dispensar uso da algema sim”, disse.