Ao citar a comunidade onde nasceu e foi criada, Nídia Ramalho Miranda, de 52 anos, fala sempre no passado. Moradora de Piauí Poço Dantas, na zona rural de Itinga, no Vale do Jequitinhonha, ela viu o que, antes, era um local conhecido pela calmaria, se transformar com a chegada da mineradora canadense Sigma Lithium. De 2023 para cá, o povoado isolado às margens do ribeirão Piauí ganhou contornos de “paisagem lunar”, com a vegetação da área de transição de três biomas — Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga — sendo trocada por crateras de onde o mineral raro é retirado e enormes pilhas de rejeito cinzentas. “A gente tinha uma vida bem tranquila. Aqui era uma comunidade pacata, de pessoas humildes, mas de caráter! Aí, de repente, apareceu a Sigma”, lamenta a moradora.
Nídia conta que, para a empresa se instalar no local, nenhum morador foi consultado. “Chegaram invadindo o território, sem participação da comunidade. Pousaram um avião, e pronto”, lembra. Só dias depois do início da operação, a mineradora teria passado a realizar reuniões quinzenais, chamadas pela empresa, segundo Nídia, de “Reuniões de Diálogo”. A ausência da consulta às comunidades tradicionais da região foi um dos motivos que levaram o Ministério Público Federal (MPF) a enviar, no início do mês, uma recomendação à Agência Nacional de Mineração (ANM). No documento, embasado em uma série de relatórios técnicos elaborados por peritos, o procurador Helder Magno da Silva pede que as autorizações de pesquisa e extração de lítio em análise em toda a região sejam suspensas, e que aquelas já concedidas sejam revistas.
Segundo Nídia, além do impacto visual e sonoro, as explosões da mineradora e o trânsito de veículos pesados dentro da mina também trouxeram impactos diretos nas casas e na saúde dos moradores mais próximos. Ela se queixa das rachaduras nas paredes do imóvel e, também, da poeira que se espalha pela região. "É poeira, é barulho, ninguém consegue dormir. A poluição é muita. As pilhas de rejeito estão a poucos metros das casas. Tem pedras rolando no quintal dos moradores", lamenta.
Maura Ribeiro dos Santos, de 56 anos, também mora desde a infância na comunidade vizinha à Sigma. Assim como Nídia, ela reclama da poeira gerada a partir das explosões para detonação de rochas e com a movimentação de máquinas. “Além de trincas nas casas, é uma poeira o dia todo. Fico sufocada, mas sem poder abrir as janelas de casa, porque a poeira invade tudo”, conta.

Os problemas enfrentados pelos moradores também vêm sendo denunciados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Em nota, o movimento aponta a degradação ambiental e os prejuízos à qualidade de vida das famílias no entorno. A entidade menciona em suas denúncias a redução do volume de água do ribeirão Piauí, a intensificação da poeira, o barulho constante e as rachaduras nas casas. “Também há severos impactos na saúde, como aumento de problemas respiratórios, abalo na saúde mental e prejuízos econômicos, já que muitas famílias perderam áreas de plantio, como suas hortas, comprometendo sua subsistência”, escreveu o MAB.
A deputada federal mineira Célia Xakriabá (PSOL), participou em julho deste ano do Clímax 2025 - 2º Encontro de Cultura, Comunicação e Clima, evento realizado em Diamantina e que discutiu o impacto da mineração de lítio na região em um contexto de mudanças climáticas. Em entrevista a O TEMPO, a parlamentar explicou que já apresentou no Congresso um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 510/2025) para sustar os efeitos do decreto de Jair Bolsonaro que permitiu a exploração do lítio no Brasil, na visão dela, sem critérios adequados de proteção ambiental e social.
“Com base nesse PDL, o PSOL vai mover uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), no STF, que busca impedir que a mineração do lítio avance sob qualquer circunstância, sem respeito aos direitos humanos, à legislação ambiental e aos territórios tradicionais. A transição energética não pode ocorrer às custas dos territórios, das florestas e da vida”, defendeu a primeira deputada indígena do Brasil.
Impactos não se restringem às comunidades mais próximas
Ainda conforme o MAB, para além dos impactos mais perceptíveis na comunidade de Piauí Poço Dantas, os problemas causados pela atividade da Sigma já chegam até as sedes dos municípios. “O município de Araçuaí também sofre com o aumento do número de habitantes, sobrecarregando os serviços públicos municipais, e também com elevação do custo de vida, como a extrema especulação dos aluguéis. Onde antes se alugava uma casa digna de se viver por R$500, atualmente, outra sem muro e pequena está a mais de R$1.000”, pontua o movimento.
Dinei Gomes, representante da Comunidade Quilombola do Jirau, em Araçuaí, garante que a atividade desta e outras mineradoras de lítio na região já está afetando a todos que moram ali. “A maior parte do município é afetado, pois os hospitais estão superlotados. Aumentou o número de pessoas aqui, o fluxo de gente na cidade e, consequentemente, o custo das coisas também. Seja o aluguel, a oficina para consertar os veículos, tudo está mais caro por ter uma demanda maior”, pontua.

Durante visita à região em maio deste ano, a reportagem de O TEMPO identificou que, desde que o governador de Minas, Romeu Zema (Novo) lançou em Nova Iorque, em maio de 2023, o projeto que o Estado batizou de Vale do Lítio (Lithium Valley Brazil), o principal hospital que atende a região sofreu um aumento de 30% na demanda hospitalar. Localizado em Araçuaí, cidade-polo na região, o Hospital São Vicente de Paulo atende a população local e, ainda, os moradores de outros seis municípios: Coronel Murta, Virgem da Lapa, Itinga, Berilo, Jenipapo de Minas e Francisco Badaró.
Ao todo, a demanda supera 125 mil pessoas, para uma oferta de 83 leitos, entre clínicos, cirúrgicos de média complexidade, obstetrícia, ginecologia e pediatria. Há uma ala de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em fase final de construção e regularização. Até que isso seja feito, pacientes em quadro grave são encaminhados para Diamantina, em um trajeto que, de ambulância, supera três horas. Em janeiro, a Fiocruz divulgou o resultado da pesquisa que acompanhou a saúde da população de Brumadinho após o rompimento da barragem de Fundão e, consequentemente, a maior exposição aos rejeitos e seu pó. Durante os três anos de pesquisa, foram identificados metais pesados, como arsênio, mercúrio e chumbo, em 100% das crianças do município.
Segundo Nídia Ramalho Miranda, ainda não se sabe muito sobre os possíveis impactos na saúde, porém, os danos psicológicos da mineração já são sentidos por quem continuou na comunidade. “O povo está adoecendo, está ficando depressivo, está tendo crise de ansiedade porque tem medo. Eu mesma faço tratamento devido às crises de ansiedade", completa Nídia. Segundo ela, quando os moradores procuram a Sigma para tratar sobre os problemas enfrentados, seus representantes dizem apenas que não estariam causando impacto nenhum. “E, agora, estão querendo aumentar ainda mais a atividade. A gente espera que os órgãos públicos tomem alguma providência, pois não tem como um humano viver ali mais. Nem os animais estão permanecendo”, complementa.
Sobre as denúncias dos moradores, a Sigma informou que os estudos ambientais do projeto Grota do Cirilo já consideravam a distância entre as atividades da empresa e a escola e casas do povoado, o que estaria “em conformidade com os parâmetros técnicos e legais cabíveis”. “Dessa forma, além de cumprir os critérios legais, a Sigma está adotando medidas adicionais e voluntárias que reforçam a melhoria na percepção da comunidade. A Sigma estruturou e está implementando o Programa de Implantação de Cortina Arbórea, concebido justamente para ampliar a proteção socioambiental em relação a áreas sensíveis, como a Escola Municipal Nuno Murta e as comunidades vizinhas. O programa cria uma faixa de restrição ambiental mais ampla, que funciona como barreira ecológica e visual, contribuindo para a redução de poeira, a estabilização de taludes e a integração paisagística”, escreveu.
Sobre o monitoramento da qualidade do ar, a mineradora disse implementar “um robusto Programa de Controle e Monitoramento da Qualidade do Ar”, o que contemplaria ações de mitigação e acompanhamento contínuo das emissões atmosféricas. “Os níveis de material particulado registrados nas comunidades vizinhas às operações da Sigma — como Poço Dantas, Ponte do Piauí e Taquaral Seco — estão significativamente abaixo dos limites estabelecidos tanto pela legislação brasileira quanto pelos padrões internacionais”, alegou a empresa sem citar os valores medidos na região.
Entre as medidas que seriam adotadas estão a umectação de vias internas de acesso às comunidade; uso de canhões de névoa e aspersores fixos em pontos estratégicos; monitoramento da direção dos ventos para planejamento das detonações e redução da dispersão de partículas; execução de desmontes controlados com explosivos eletrônicos, que reduzem em até 80% a geração de poeira e ruído; entre outras medidas. “A combinação entre tecnologia de ponta, medidas operacionais rigorosas e monitoramento contínuo em campo e laboratório assegura que os impactos atmosféricos associados às atividades da Sigma sejam efetivamente mitigados. Todas as informações são documentadas, auditáveis e disponíveis para consulta em relatórios técnicos e canais institucionais”, concluiu.
‘Não existe mineração verde’, diz indígena
Entre as comunidades tradicionais que não foram consultadas sobre os projetos de mineração de lítio no Jequitinhonha, conforme a ação movida pelo MPF, está a Aldeia Cinta Vermelha, que reúne indígenas das etnias Pankararu e Pataxó. Cleonice Pankararu, líder da comunidade, conta que, apesar de não estarem localizados ao lado da Sigma, já sofrem com os impactos da atividade. “Não existe mineração verde, ou sustentável. Isso é só propaganda mesmo. A gente sente os impactos nos animais, que estão tendo seu habitat destruído e, ao procurar um novo lugar, estão sendo atropelados. Temos fotos de vários animais que estão na lista de extinção mortos, jaguatirica, tamanduás, veado campeiro. Com o aumento do trânsito de veículos, cresceu muito o número de atropelamentos”, disse.
Ainda segundo a indígena, com a destruição da paisagem local e o impacto sonoro da mineração, abelhas e morcegos estão ficando desorientados. “Isso sem falar da supressão vegetal, aroeira, angico, plantas endêmicas, que só tem aqui na nossa região. Elas vão desaparecer por causa dessas práticas da mineração”, protesta a líder da comunidade.
Pesquisador critica atuação do Estado no processo
Professor de Geologia da UFMG, Klemens Laschefski é um dos pesquisadores que participaram da elaboração de uma Nota Técnica que identificou uma série de irregularidades no projeto de ampliação da mineradora Sigma. Em entrevista a O TEMPO, ele critica duramente os órgãos ambientais de Minas Gerais. Uma das principais críticas refere-se ao que ele chamou de fragmentação do licenciamento ambiental. Para Klemens, o complexo de múltiplas cavas, com a previsão de até nove crateras para exploração de lítio, é licenciado em etapas separadas, mesmo alimentando uma única unidade industrial. "Não tem sentido separar cada cava, é um projeto só", pondera. Tal estratégia, segundo ele, configura uma "negligência muito grave”. “Não consideram mais as dimensões reais dos empreendimentos, partem de um conhecimento abstrato do conteúdo mineral", completa o professor.
A desconsideração dos impactos cumulativos é outra falha grave apontada por Klemens. Ele enfatiza que "os impactos cumulativos não foram considerados no licenciamento", resultando em "um estrago enorme". Há uma profunda preocupação com os efeitos no subsolo e nas águas subterrâneas, especialmente na região semiárida do Jequitinhonha. "Não sabemos o impacto no subsolo, nós sabemos que o Jequitinhonha é uma área semiárida, e é muito difícil lidar com cavas de 155 metros de profundidade. Isso é muito fundo, nós sabemos que essas águas subterrâneas podem ser afetadas e pode também afetar os poços artesianos das populações tradicionais", argumenta. Ele ainda observa que os órgãos "estão preocupados se a água entra na cava, mas não preocupam com a falta de água nas comunidades ao redor".
Por fim, o pesquisador diz acreditar que exista uma insuficiência na fiscalização do Estado. “O fato que comunidades tradicionais sofrem com os tremores mostra que o licenciamento ambiental não foi bem feito, que ele falhou, pois tem gente sofrendo com os impactos ambientais", completou Klemens.
Indagada, a Semad informou, por nota, que a fragmentação de processos de licenciamento é vedada pelas normas ambientais. “Quando verificada, e havendo comprovação de benefícios indevidos ao empreendedor — como redução de custos ou flexibilização de exigências —, são adotadas as devidas medidas legais, incluindo autuação. O pedido de ampliação da mineradora Sigma ainda está em análise pelo órgão ambiental”, escreveu a pasta.
Sobre a escolha do método de cava a céu aberto, o Estado afirmou que a alternativa tecnológica foi adotada considerando aspectos técnicos do empreendimento, como a profundidade da jazida, tipo de ocorrência, geometria, relação estéril/minério e a presença de recursos hídricos subterrâneos. “Durante o processo de licenciamento ambiental, também foram realizadas quatro vistorias de campo para subsidiar a análise técnica. Sobre a localização dos empreendimentos da Sigma, ressaltamos que a empresa apresentou os projetos EIA/RIMA — estudo ambiental mais completo e detalhado — que contempla, inclusive, a avaliação de impactos cumulativos. Dessa forma, não se configura fragmentação, uma vez que todas as ampliações seguiram o rito regular do licenciamento ambiental”, completou.
(Com Simon Nascimento)