Desprendimento

Altruísmo é o principal motivo para doações

Quem procura o programa da UFMG quer ajudar o próximo por meio do estímulo à ciência

Por João Renato Faria
Publicado em 26 de dezembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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“Eu procuro ajudar e ser agradável com todo mundo. Por isso, meu corpo, depois que eu morrer, pode continuar essa missão”. É assim que o aposentado Jarbas Teixeira, 83, justifica sua inclusão no programa de doação de corpos Vida após a Vida, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ele se interessou pela iniciativa há cerca de um ano e meio, quando fez seu cadastro. “Em vez de enterrar, cremar, levar coroas de flores e fazer velório, o que eu acho uma chatice, pensei que meu corpo poderia ajudar a salvar vidas por meio dos estudantes de medicina, que poderão aprimorar seus ensinamentos”, avaliou Teixeira.

Segundo ele, a família estranhou um pouco a decisão no início, mas depois apoiou. “Não é uma iniciativa muito comum. Sou viúvo, mas tenho três filhos, e eles ficaram um pouco surpresos, mas depois não fizeram objeção nenhuma, concordaram”, revelou o aposentado.

Espiritualista, Teixeira garante que se aprofundou na história das religiões ao longo da vida, e, segundo ele, a doação de corpos não vai de encontro a nenhum dogma. “Ainda não encontrei nenhum empecilho de religião alguma para esse ato”, afirmou.

A motivação do coordenador de vigilância Welsey Rosa, 44, que se inscreveu há seis meses, também passa pela preocupação com o próximo. “Ter um corpo à disposição certamente ajuda a preparar melhor os alunos de medicina. Além disso, eu fico muito apreensivo com o destino que estamos dando para os corpos e não sei se enterrar é a melhor solução para o meio ambiente. Por isso me tornei doador”, contou.

Rosa também tem sérias restrições aos rituais ocidentais que lidam com a morte, como o velório. “Acho uma hipocrisia, todo mundo triste por uma coisa que não vai ter volta. Acho que a doação é a melhor opção”, defendeu.

Gratidão. Quem imagina que o laboratório de anatomia, por se tratar de uma sala de aula, terá barulhos, brincadeiras de mau gosto e bagunça, se enganou. O tom que impera no ambiente é de profundo respeito.

Segundo a estudante Gabriela Ruiz, 23, os próprios alunos se encarregam de corrigir quem faz algum comentário infeliz. “Não tem piadinha nem brincadeira. Todo mundo sabe que quem está ali são pessoas que se ofereceram e abriram mão de ter uma despedida para ajudar nossa formação. Temos que retribuir nos tornando bons médicos”, afirmou.

Estudante do terceiro período de medicina, Marcos Lanna Damásio, 21, ressalta a gratidão pelo gesto dos doadores. “Destinar o corpo para estudos é uma atitude muito nobre. Temos que ter respeito e ser muito gratos por quem se dispõe a fazer esse gesto”, avaliou.

O calouro Almir Marquiore Júnior, 20, destacou a oportunidade de fazer uma dissecação desde o início. “É uma aula que ensina demais. Eu aprendi muito mais com o contato direto do que aprenderia com um modelo plástico ou outro recurso, como uma ilustração”, concluiu.

 

Passo a passo

Agendamento. Quem tem interesse em doar seu corpo deve agendar uma entrevista com os professores da UFMG, entre 14h e 19h, pelo telefone (31) 3409-9739. Nessa etapa, também são esclarecidas dúvidas sobre o processo.

Conversa. Após a entrevista, o doador assina um termo e ganha uma carteirinha com os contatos da universidade. Ele deve comunicar sua decisão à família, já que são os parentes que informam a universidade em caso de morte.

Chegada. A UFMG mantém um plantão 24h para receber os corpos dos doadores, que passam por um tratamento para serem conservados.


Conservação

Morosidade imposta por lei impede obtenção de cadáveres

Um dos principais entraves para a obtenção de materiais humanos para estudo é a Lei 8.501/1992, que regulamentou a destinação de corpos para entidades federais de ensino e pesquisa. Segundo o texto, o cadáver que não for reclamado junto às autoridades públicas poderá ser destinado para escolas de medicina. O problema é que a legislação determina um prazo para que isso ocorra: 30 dias.

O período, segundo o técnico em necropsia e anatomia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) José Eustáquio Barboza, é um impeditivo, pois é mais do que suficiente para que o corpo entre em decomposição, o que impede que a conservação seja feita. “Certa vez, descobrimos que havia um doador que estava no Instituto Médico-Legal havia 72 horas. Infelizmente, tivemos que abrir mão, pois já seria impossível tratar com a qualidade que precisamos”, contou.

Outro motivo para rejeitar as doações é quando os falecimentos têm algum tipo de violência, como agressões ou acidentes automobilísticos, já que o corpo passa a ser uma evidência de crime. Doenças, por outro lado, não causam nenhum impedimento para o ato.

“É claro que estudamos qual foi a causa da morte, para saber se precisamos tomar alguma medida de segurança. Se é uma vítima de meningite meningocócica, por exemplo, tenho que tomar um remédio antes. Mas, fora esse detalhe, nenhuma enfermidade impede a doação”, disse Eustáquio.

Tratamento. Ele também detalhou o processo que envolve a conservação dos cadáveres. Assim que o corpo chega à universidade, ele passa pelo bombeamento de um líquido, feito à base de formol e de solução salina, que substitui aos poucos o sangue. Depois disso, o corpo é armazenado em uma cuba com formol, onde fica até o momento de ser utilizado pelos alunos. “A primeira dissecação é a mais importante, pois mostra como é feito o acesso ao abdômen. É um conhecimento muito difícil de se obter, já que é preciso um cadáver que ainda não tenha sido estudado. Graças ao programa, nós temos”, contou a estudante Gabriela Ruiz, 23.

À medida que os corpos vão sendo estudados, ocorre um desgaste natural. Quando isso acontece, ele normalmente é dividido. “Preservamos os órgãos, como pulmões e rins, para estudos específicos, assim como os membros. Quando não há mais condições de ser analisado, separamos os ossos, que também são fundamentais para o aprendizado”, concluiu Barboza. (JRF)

Manicômios

Prática. Antes da criação de uma legislação específica sobre a utilização de corpos em instituições de ensino, foi comum o uso dos cadáveres de pacientes oriundos dos manicômios que existiam no Estado.


Família pode doar corpo de quem não se cadastrou em programa

Apesar de a Faculdade de Medicina pedir que o registro dos doadores seja feito em vida, ele não é fundamental para que um corpo chegue até a universidade para ser utilizado nos estudos. Dos 68 corpos recebidos até hoje, 25 foram doados pela família.

“Temos pessoas que manifestam o desejo, mas por vários motivos não conseguem vir até aqui para a entrevista e assinar o termo. Não tem problema, já que a decisão final, mesmo de quem se registrou, cabe à família”, explicou o coordenador do programa Vida após a Vida, professor Humberto Alves. (JRF)

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