Belo Horizonte podia ser uma cidade cheia de rios e pontes, como uma “Veneza brasileira”. Debaixo das avenidas Afonso Pena, Prudente de Morais, Silviano Brandão, Pedro II e tantas outras vias passam rios que foram canalizados e cobertos nas décadas passadas – assim como o Bulevar Arrudas, recentemente. Conforme levantamento feito pela Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), 165 km (25% do total) dos cursos d’água da cidade são tapados pelo concreto das chamadas “avenidas sanitárias”.

Enquanto os córregos se tornaram invisíveis, o trânsito de veículos passou a ser uma atração diária e “indesejada”. Não sobrou nenhum grande rio na paisagem da cidade, que se tornou a capital de Minas Gerais justamente porque era uma “caixa d’água”. No contexto atual de crise hídrica, especialistas avaliam que é o momento de se repensar como as águas urbanas são tratadas. Tinha-se a visão de que a canalização resolveria os problemas de inundações e de saneamento. Mas apenas escondia a “sujeira”.

Restaram apenas 96 km de rios em leito natural na capital, mas a maioria está tomada por lixo e esgoto. Em 2001, a Prefeitura de Belo Horizonte lançou o “inovador” programa de drenagem urbana Drenurbs/Nascentes, para recuperar os cursos d’água, evitando as então tradicionais canalizações.

Quase 15 anos depois, o programa não terminou a primeira fase – dividida em cinco bacias –, que seria concluída em cinco anos. “É um projeto elaborado para todos os córregos urbanos, mas as intervenções são feitas a partir da viabilização de recursos e das prioridades do plano de saneamento de Belo Horizonte”, disse o coordenador executivo do Drenurbs, Ricardo Aroeira.

Para o ambientalista Apolo Heringer, a promessa da prefeitura de reverter a fórmula de canalização não vem sendo cumprida. “Foram feitas as primeiras obras, depois se abandonou. A lógica ainda é canalizar e fazer bulevar. Todo dia tem canalização. O Arrudas era igual ao rio Cipó, com dezenas de afluentes, mas a especulação imobiliária e a mineração acabaram com as águas de BH, e agora a gente só vê quando tem enchente”.


Nas nascentes preservadas do córrego Primeiro de Maio, os moradores, como Francielly Felipe, 4, e os pais, podem conviver com o rio

Heringer defende a renaturalização dos córregos para diminuir, inclusive, as inundações. “Na Alemanha e na Espanha tiraram os canais. Rios e pontes embelezam as cidades”, completou.

Segundo o coordenador do Drenurbs, tirar o concreto dos córregos não seria uma opção viável, porque os rios já estariam “mortos”. “Uma vez revestido de concreto, ele deixou de ser um curso d’água para ser um canal. Por isso, o foco do Drenurbs é recuperar os rios que ainda estão em leito natural, e não ter mais canalizações”.

Bulevar

Arrudas. A cobertura do ribeirão que originou o Bulevar Arrudas começou em 2007, pelo governo do Estado, e teve a última etapa em 2013. Ainda está prevista a pavimentação de mais 1,3 km. Os jardins instalados na via só podem ser experimentados por meio dos automóveis.

Maior. Esse foi um dos maiores córregos cobertos em Belo Horizonte (cerca de 5 km), cortando as regiões Centro-Sul e Noroeste.

Saiba mais

Endereços dos parques.  Primeiro de Maio: rua Joana D’Arc, 190, Minaslândia; Nossa Sra. da Piedade: rua Rubens de Souza Pimentel, 750, Aarão Reis; Baleares: rua Albânia, 17, Jardim Europa.

Estrutura. No Primeiro de Maio foi feita uma bacia de contenção para reduzir os riscos de inundação, rede de drenagem, pista de caminhada, quadras, academia e arborização paisagística.

Mais verde. A capital tem 43% do território impermeabilizado. A proposta aprovada na Conferência Municipal de Política Urbana adequa o uso e a ocupação do solo ao aumento de áreas permeáveis. Diante da impermeabilização, a captação de água para abastecimento atualmente é feita em mananciais fora da cidade.

 

O asfalto ‘embelezador’

O diretor do Arquivo Público de Belo Horizonte, Yuri Mesquita, em sua tese de mestrado em história, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisou a época da cobertura dos rios na capital, entre 1948 e 1973.

“A canalização tornou-se o espelho do progresso para os políticos (...), a partir de 1960, o asfalto, além de ser mais útil, era mais bonito. A pavimentação também possibilitaria o plantio de árvores e flores nos canteiros (...), os córregos foram relegados a um segundo plano da vida urbana, pois seriam canalizados para acompanhar as ruas retas, com esquinas em 90 graus (...)”, dizem trechos do estudo.

Mesquita ilustra essa situação com uma propaganda publicada no Diário de Minas, em 1973, sobre o córrego do Acaba Mundo: “Em nome do progresso a prefeitura eliminou-o da paisagem, abrindo em seu lugar uma ampla avenida pavimentada”.

E o historiador conclui: “As obras de canalização não podem ser consideradas obras de saneamento básico, pois camuflam a poluição dos rios e não resolvem o principal problema: a degradação dos cursos de água. Além disso, provocam problemas ambientais como o aumento da temperatura e a diminuição da umidade”.

Proposta de conferência é criar parques para preservar os rios 


Casal frequenta parque em busca de sombra

A preservação dos córregos urbanos que ainda correm em leito natural em Belo Horizonte, além de promessa do Drenurbs, é agora uma proposta aprovada na Conferência Municipal de Políticas Urbanas, no ano passado – a ser votada na Câmara Municipal, em breve.

Hoje, a capital tem três parques lineares construídos a partir do Drenurbs: o do córrego Nossa Senhora da Piedade; do córrego Primeiro de Maio; e do córrego Baleares. São locais em que se conciliam os aspectos urbanos e ambientais com áreas de uso social e aumento de área permeável. “Ao renaturalizar os cursos d’água, implantando espaços de lazer, quando vem a cheia, a água é acomodada pela área permeável e vazia ao lado”, explicou o urbanista Rogério Palhares.

A reportagem visitou o parque Primeiro de Maio, com 48 hectares, no bairro Minaslândia, na região Norte, que existe desde 2008. O parque é limpo, bonito, com espécies diferentes de plantas e nove nascentes preservadas. A dona de casa Rosana Ribeiro dos Santos, 25, e o encarregado de obras Wagner Celio Ramos, 33, aproveitam as sombras para namorar.

O casal se conheceu quando Ramos trabalhava na construção de um muro de gavião no córrego – para recuperar o leito –, há cerca de dois anos, e Rosana era vizinha do parque. “Os rios deveriam sempre ser tratados assim. Um lugar desse é raro, a cidade só tem asfalto e concreto, resta essa sombra para nós”, disse o encarregado.

Além de ter um lugar pra descansar à sombra, o parque é em si uma aula de educação ambiental, fazendo com que as pessoas retomem o contato e o respeito com a natureza. Aos 4 anos, Francielly Maria Domingos Felipe já sabe o que é uma nascente e como é importante mantê-la. “Esse parque foi a melhor coisa que fizeram aqui para a gente”, contou o pai, o eletricista Marcos Felipe, 47.

“O rio faz parte da paisagem urbana, a cidade fica feia sem ele”, destacou o ambientalista Apolo Heringer.

Segundo o coordenador do programa Drenurbs, Ricardo Aroeira, a intenção é, sempre que possível, implantar parques ou áreas de convívio social junto aos córregos que estão em leito aberto. A criação de parque lineares também consegue impedir que haja ocupações irregulares na beira do córrego, uma prática muito comum.

Cobertura não evita inundação

A ideia de canalizar os rios surgiu, segundo especialistas, com a especulação das empreiteiras para construir imóveis e pistas. Como o esgoto era todo jogado nos córregos urbanos e ocorriam enchentes, o problema era tapado com concreto. De acordo com o diretor de projetos da Sudecap, Ricardo Aroeira, essa era uma visão equivocada, de que diminuiria os riscos de inundações.

“Quando se canalizava um rio, o problema passava para outros rios, e iam canalizando a cidade inteira. Hoje, não pode chover que inunda”, afirmou o ambientalista Apolo Heringer. Prova disso é que há anos a Sudecap vem fazendo obras de prevenção, principalmente em córregos canalizados, como implantação de bacias e barragens para reter a água da chuva.

“A solução do passado afastava o problema para as áreas baixas. Mas o canal vira uma tubulação com vazão limitada. Se tivermos uma enchente avassaladora no Arrudas, a diferença é que agora a via será destruída. Construir bacias de detenção sem controlar a impermeabilização do solo é apenas um paliativo”, disse o professor de Arquitetura e Urbanismo da UFMG Rogério Palhares.

As obras de combate a inundações na calha do Arrudas, previstas para começar neste ano e terminar em 2017, incluem um reservatório de controle de cheias, no bairro das Indústrias, e uma bacia de detenção, no Calafate, na região Oeste.

“A cobertura dos rios também reduziu a relação que a cidade tinha com as águas urbanas. Daqui a uns anos, ninguém lembrará que no Bulevar passa um rio”, disse Palhares. 

Matéria foi publicado originalmente em 1º de março de 2015