Levantamento exclusivo

Brumadinho: Mapa inédito revela localização de vítimas da tragédia

Análise das marcações de GPS aponta a localização exata dos corpos de vítimas da barragem da Vale e evidencia a violência da avalanche de rejeitos

Por Manuel Marçal, Marcos Carreiro e Renato Crozatti
Publicado em 25 de janeiro de 2023 | 03:00
 
 
 
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AVISO: Apesar de não apresentar nomes, a reportagem contém detalhes das buscas e do processo de identificação das vítimas da tragédia. Também há detalhamento sobre o resultado da força da lama sobre os corpos dos atingidos rompimento da barragem naquele 25 de janeiro de 2019. O conteúdo é considerado sensível. 

Mais de uma vez, técnicos e pesquisadores usaram o termo “liquidificador” para classificar o movimento da lama que vazou da barragem B1, da mineradora Vale, em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. Quatro anos depois, levantamento inédito realizado a partir de marcações de GPS feitas pelo Corpo de Bombeiros de Minas Gerais mostra que as vítimas da tragédia estiveram literalmente dentro de um: os militares chegaram a encontrar 23 partes de uma mesma pessoa no decorrer da mais longa operação de buscas da história do país.

O mapa de uma tragédia: Leia aqui a matéria completa

A reportagem é fruto de uma investigação conjunta dos jornalistas Manuel Marçal (jornal O Tempo); Marcos Carreiro (jornal O Popular, de Goiás); e de Renato Crozatti, como trabalho de conclusão de curso (TCC) do MBA em Jornalismo de Dados do  Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Os dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram as coordenadas geográficas registradas pelas equipes de busca nos locais onde encontraram corpos ou partes das vítimas (segmentos, no termo técnico), entre o dia da tragédia e 8 de agosto de 2022, revelando fragmentos encontrados, em linha reta, a mais de 10 quilômetros da barragem. Alguns corpos soterrados pela lama foram localizados a mais de 20 metros de profundidade.

Isso ocorreu devido a dois fatores principais: ao grande volume de rejeito e à velocidade com que ele atingiu as vítimas. A B1 guardava mais de 10 milhões de metros cúbicos de rejeito – espécie de lama formada, em grande parte, por minerais sem valor econômico que são depositados por mineradoras em barragens. Uma maneira barata de “descartar” aquilo com o qual não se pode lucrar, na impossibilidade legal de jogar o material na natureza.

No dia da tragédia, esse volume, que representa algo em torno de 11 milhões de caixas d’água residenciais de mil litros cada, rompeu em uma onda de aproximadamente 18 metros de altura e com velocidade superior a 100 km/h, o que garantiu força suficiente para empilhar vagões de trem, levar prédios inteiros e arrastar as 270 pessoas que estavam em seu caminho naquele 25 de janeiro.

A análise dos dados do Corpo de Bombeiros revela 1.175 achados durante os quatro anos de buscas, entre corpos e segmentos, considerando apenas aquilo que foi classificado como possivelmente humano. Desse total, 1.009 dizem respeito a segmentos, que vão de membros a tecidos biológicos; dos 166 corpos, poucos foram encontrados intactos.

Seguindo o padrão de observações dos bombeiros nas planilhas, a reportagem considerou como “corpo” o que as equipes assim classificaram para retratar o que foi encontrado nas buscas, algo mais comum nos primeiros dias da operação. Mas também classificou desta maneira o que as equipes relataram como sendo troncos com ao menos um dos membros. O restante foi classificado como “segmento”.

Nem tudo o que foi encontrado, porém, chegou ao Instituto Médico-Legal (IML) de Belo Horizonte, responsável pela identificação das vítimas da tragédia. Isso ocorreu porque, entre os achados pelas equipes de buscas, estão, por exemplo, objetos com resquícios de sangue ou tecidos biológicos, como capacetes e sapatos. Tudo o que foi encontrado foi classificado e compõe a planilha da operação do Corpo de Bombeiros.

Segundo informações do IML, até 17 de janeiro de 2023, 1.004 casos haviam sido catalogados, o que engloba restos humanos, animais, vegetais e minerais. Desse quantitativo, 83 são corpos completos e 921 segmentos, entre os quais 148 não humanos. Do total, 968 casos tiveram análise finalizada, incluindo 113 considerados inconclusivos; outros 36 ainda estão em análise de DNA. Das 270 vítimas, 267 foram identificadas.

O som da tragédia

Na sonificação abaixo, é possível ouvir e ver a quantidade de corpos e segmentos encontrados pelos bombeiros, mês a mês, desde janeiro de 2019. No som, quanto mais aguda a nota dos instrumentos, maior a quantidade encontrada pelas equipes de busca no mês de referência. Ao fundo, é possível ouvir sons que representam as várias etapas da operação.

A sonificação dura pouco mais de um minuto porque foi esse o tempo aproximado que a lama demorou para chegar ao refeitório da Vale, onde se encontrava a maioria dos funcionários no início da tarde daquele 25 de janeiro — a barragem rompeu às 12h28, horário de almoço. “Aquele local onde havia centenas de pessoas se desfez por completo com a ruptura da barragem”, explica o médico-legista José Roberto de Rezende Costa, que era diretor do IML em Belo Horizonte à época do desastre.

Ele aponta que os milhões de metros cúbicos de rejeito de minério “correram naquela região, não só espalhando os corpos como destruindo tudo que ia à sua frente, carregando consigo pedras, blocos de concreto, automóveis, vagões e trilhos de trem, árvores, tudo quanto é material que você possa imaginar.” “Infelizmente, aquilo causou uma grande destruição material, animal e, notadamente, em pessoas. Causou a fragmentação dos corpos”, relata.

A grande concentração de pessoas no refeitório fez com o que o local se tornasse uma das prioridades no início das buscas, e algumas das pessoas foram localizadas a cerca de 500 metros de onde a estrutura se encontrava.

Tsunami de lama

O mar de lama atingiu um perímetro de 33,3 quilômetros, o que equivale a 300 campos de futebol. É o que se chama de mancha de danos (veja mapa abaixo). A maioria dos corpos e segmentos foi recuperada dentro dessa área, mas parte deles foi encontrada fora da mancha.

 

O fato de algumas das “joias” (forma como os bombeiros de Minas Gerais se referem às vítimas da tragédia) terem sido encontradas a uma distância maior da mancha pode ser explicado a partir do encontro da lama com o rio Paraopeba. Tanto que o segmento achado a 10 quilômetros da barragem, citado no início do texto, assim como um corpo localizado a 9,4 quilômetros – considerando sempre a distância em linha reta – estavam às margens do rio.

Isso é parte do que o professor e pesquisador Carlos Martinez classifica como “tsunami de lama”. À frente do laboratório de modelagem física que estuda fenômenos de barragem na Universidade Federal de Itajubá (Unifei), ele explica que a maior parte dos seres atingidos pelo tsunami foi triturada: “O efeito é semelhante a você pegar um grupo de formigas em cima de uma placa e, de repente, alguém passa uma lixa em cima e arrasta”, diz, antes de fazer uma pausa na explicação. “Só ficam os pedaços.”

Martinez ressalta que “não quer ser mal compreendido com essa comparação”, referindo-se àqueles que perderam entes na tragédia, e diz que a prova física da força cinética da lama foi a destruição do pontilhão da linha férrea sobre o rio Paraopeba, uma das marcas da devastação do “tsunami de lama”. “A potência disso é enorme. É como jogar uma bomba de alto poder destrutivo naquele lugar”, arremata.

Outra prova da força da lama foi o fato de que, mesmo depois de percorrer quilômetros, ela ainda conseguiu subir cerca de 400 metros do rio Paraopeba, conforme observa o major Rafael Neves Cosendey, um dos primeiros a sobrevoar o local da tragédia. Ele era subcomandante do Batalhão de Emergências Ambientais e Resposta a Desastres (Bemad) do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais à época.

Foi de Cosendey a iniciativa, logo no primeiro dia da operação, de ordenar o georreferenciamento das buscas. Ele relata que, já em seu primeiro sobrevoo para reconhecimento da área, fez marcações daquilo que via a olho nu utilizando o próprio celular e o GPS do helicóptero: telhado de casas, lajes e vítimas que estavam na superfície do mar de lama, o que foi essencial tanto para que as equipes soubessem, de imediato, onde buscar por possíveis sobreviventes, quanto para que uma operação fosse traçada depois.

Desafio gigantesco

O mapa abaixo mostra a dimensão da tragédia: entre janeiro de 2019 e agosto de 2022, última atualização dos dados a que a reportagem teve acesso, foram encontrados 166 corpos completos e não completos, 1.009 segmentos de corpos – incluindo membros, ossos e outras partes – e há 30 registros “sem classificação”.

Os registros “sem classificação” dizem respeito tanto àquilo que foi georreferenciado pelos bombeiros, mas que não houve anotação sobre o que se tratava nem observações que pudessem auxiliar a reportagem no entendimento dos dados, quanto ao que foi descrito pelas equipes de busca como “sem identificação”, “não identificado” e “parte não identificada”.

O termo “identificação”, neste momento, não diz respeito à identidade das vítimas, mas à classificação, por parte das equipes de busca, do que foi encontrado – se um segmento achado era uma parte humana ou não, por exemplo. No mapa, é possível ver a localização onde os corpos (azul), segmentos (vermelho) e achados sem classificação (cinza) foram encontrados pelo Corpo de Bombeiros.

Os círculos brancos no mapa dizem respeito a “áreas de espera”. Às margens da mancha de danos, esses locais reuniram toneladas de lama que foram retiradas pelos bombeiros ao longo da operação de varredura nas áreas de busca, e que foram, depois, reexaminadas com o objetivo de confirmar se havia naquele material qualquer pista das vítimas.

Por isso, há certa reunião de dados nesses locais – uma delas, por exemplo, está acima do ponto de rompimento da mina Córrego do Feijão, o que não representa erro de georreferenciamento e tampouco significa que a lama empurrou esses corpos e segmentos até esses locais. Ao contrário, demonstram como funcionou parte da dinâmica das buscas.

Desgaste e exaustão

Porém, também há casos em que houve erro no preenchimento da geolocalização. Esses dados podem ser vistos no mapa fora da mancha de danos e das “áreas de espera”, à exceção do que foi encontrado às margens do rio Paraopeba – alguns, inclusive, aparecem a uma distância muito grande da área atingida, como o que se encontra próximo ao município de Bonfim, vizinho a Brumadinho, e a mais de 16 km de distância da barragem B1.

Tratam-se de “outliers”, ou seja, dados em que houve erro na inserção de coordenadas. A reportagem entendeu como necessário deixar esses dados no mapa, porque o conjunto dos "outliers" revelam outra história: a dificuldade dos bombeiros, em um primeiro momento, de aliar as buscas às marcações geográficas. “Era desgastante fazer a marcação do GPS”, descreve o major Rafael Neves Cosendey.

Ele conta que ficou acordado até de madrugada ao longo da primeira semana de buscas, passando para uma planilha os dados de georreferenciamento coletados ao longo do dia, e que chegou a ser acordado por colegas enquanto dormia em frente ao computador.

A reportagem também ouviu relatos de militares, sob a condição de anonimato, que anotaram as coordenadas geográficas à mão, às vezes no próprio corpo durante as buscas, e já não sabiam diferenciar os números depois, quando iam passar os dados adiante. Em alguns casos, principalmente nos primeiros dias, tirar o celular do bolso em meio a lama também era um desafio.

A maioria das coordenadas foram transmitidas via rádio e, entre ruídos de comunicação e barulhos externos nas áreas de busca, quem anotava os dados também estava sujeito a erro, além do cansaço físico durante a jornada de buscas, que envolvia, entre outras situações, se arrastar pela lama, sob risco de morte em meio aos destroços deixados pelo rompimento da barragem.

Além disso, pode ter influenciado em erros nas coordenadas o fato de que, nas primeiras semanas, a operação contou com uma grande quantidade de voluntários, que também anunciavam possíveis vítimas encontradas por meio de coordenadas geográficas a fim de permitir o deslocamento de equipes ao local indicado. Contudo, não raro, eram alarmes falsos.

 

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