“Está ruim pra comer, está ruim para dormir. Na primeira noite, a gente não dormiu de verdade, só encostou na cama. E parecia que a cama estava armada lá no inferno”. O desabafo é de Carolina Alves Bella, 42, dona de casa que mora em BH. Em novembro do ano passado, ela e o marido, Manuel Luiz Bella, 44, receberam a notícia de que a Justiça havia determinado que a guarda de Vivi, 9, adotada por eles em 2015, passaria a ser da avó paterna biológica. Após recurso do casal, a decisão foi suspensa ainda em 2020, até que o caso seja julgado. O processo tramita em segredo de Justiça e tem julgamento virtual marcado para o próximo dia 11.
Carolina diz que a criança tem sido tratada como objeto e sabe, sem detalhes, da batalha que está sendo travada na Justiça. “Ela disse: ‘Vocês estão chorando muito, eu acho que tem a ver comigo e quero explicação’. Não consegui responder na hora, e conversamos no outro dia. Expliquei que a avó paterna alcançou uma vantagem em relação a nós no processo e disse que nós iríamos lutar. Ela falou: ‘Vou lutar também’, fazendo gestos com mãos e pés”, detalha.
A mãe adotiva explica que a destituição familiar dos genitores foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), porque Vivi convivia em ambiente violento e não poderia ser criada pelos pais biológicos. Uma preocupação de Carolina é que, se a menina for morar com a avó, vai voltar a conviver com o pai biológico, que foi preso por ter matado o próprio pai – devido à pandemia de Covid-19, ele está em prisão domiciliar no imóvel. “Estão burlando a lei e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, diz.
A adoção
O casal se cadastrou no Sistema Nacional de Adoção em 2001 e, em 2014, recebeu o telefonema do órgão informando que uma criança estaria disponível para ser adotada. Na época, lembra, o promotor alertou que o pai biológico da garota havia sido preso.
“Ele (o promotor) falou tudo, que (o pai biológico) matou o próprio pai, que foi por dinheiro e que ele estaria ameaçando funcionários do abrigo, conselheiros tutelares, servidores do Judiciário. Mesmo assim, a gente falou que achava que a recompensa é muito maior que o perigo”, relembra Carolina.
Advogada dos pais adotivos de Vivi, Larissa Jardim afirma que há inúmeros equívocos no processo. “A família adotiva é acusada de adoção ilegal. Sem nenhum elemento nos autos, sem sequer isso ter sido objeto do recurso da família biológica, sem as averiguações necessárias e sem respeitar o direito de defesa”, pontua.
“Pedimos a suspensão da decisão, que foi negada às vésperas do recesso de fim de ano. Apresentamos, então, outro recurso, um agravo interno. O juiz de plantão suspendeu a ordem até o julgamento, sem entrar no mérito da questão”, explicou.
Os pais adotivos pediram a remarcação da data, para que o julgamento seja presencial. No entanto, conforme o TJMG informou na tarde de 29 de janeiro, não houve mudança “na situação da criança nem no processo”.
#FicaVivi: Abaixo-assinado tem 326 mil assinaturas
Após terem mantido postura discreta sobre o caso, Carolina e o marido decidiram, no fim de 2020, criar a campanha #FicaVivi. O assunto repercutiu e recebeu apoio inclusive de artistas, como os atores Carlos Nunes e Fabiana Karla.
“Foi duro, angustiante. Foram longas horas de conversa com nossas advogadas. A gente abriu mão da nossa privacidade e até do nosso amor-próprio para protegê-la”, diz Carolina em referência à filha adotiva.
Também foi criado um abaixo-assinado online, que pede ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) providências sobre o caso. O link para apoiar a iniciativa é change.org/FicaVivi. Até as 20h de 28 de janeiro, o documento tinha mais de 326 mil assinaturas. Procurado pela reportagem, o órgão não tinha respondido até a publicação desta reportagem.
Já a página do movimento no Instagram tinha mais de 6.800 seguidores; e o perfil no Facebook era seguido por mais de 13 mil.
Direito de família: Instituto quer apoiar pais adotivos na ação
O Instituto Brasileiro de Família seção Minas Gerais (IBDFAM-MG) vai pedir ao TJMG para ingressar, juntamente com a Comissão Nacional de Adoção, como “amicus curiae” na análise do caso, apoiando os pais adotivos. “Faremos esse pedido para que possamos ter acesso aos autos em face do segredo de Justiça que o acoberta e também para intervirmos no feito, defendendo nosso posicionamento a favor da prevalência da afetividade e do melhor interesse da criança”, afirma nota do advogado José Roberto Moreira Filho, presidente do IBDFAM-MG.
Segundo ele, retirar a criança de seus pais adotivos é causar a ela um novo rompimento, “uma dupla perda para essa criança, que primeiramente se viu alijada da família natural e, agora, de sua família adotiva”, concluiu. Até a publicação desta reportagem, o pedido não tinha sido formalizado.
Em MG, 676 estão prontos para adoção
Atualmente, 3.279 crianças estão em acolhimento com famílias ou em abrigos de acordo com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Desse total, apenas 676 estão disponíveis para adoção – os outros casos ainda estão em fase de verificação da situação. Ainda segundo a Corte, dessas 676, 348 estão em processo de adoção.
“As demais estão prontas para adoção, mas não têm pretendentes. Essas, geralmente, são crianças mais velhas, acima de 8 anos, com grupo de irmãos ou restrições séria de saúde. São pessoas que não estão no grupo preferencial do brasileiro”, explica o juiz José Roberto Poiani, da Vara de Infância e Juventude de Uberlândia, no Triângulo.
Ele detalhou que o Estado tem 4.231 pretendentes habilitados no Sistema Nacional de Adoção aguardando um filho. “Geralmente, procuram bebês, crianças de pouca idade, estourando 8 anos, sem doenças graves ou grupo de irmãos. Aí a conta não fecha”, explica o magistrado.
Pandemia
Poiani acrescentou que os números de adoções formalizadas caíram durante a pandemia de Covid-19, já que muitos prazos do TJMG precisaram ser suspensos. O juiz, no entanto, não soube informar qual o tamanho dessa diminuição.