novo normal

Covid eleva temor na hora de retomar relações presenciais

Cada vez mais as escolas e as empresas ampliam as atividades presenciais, mas muitas pessoas ainda se sentem inseguras para encarar os contatos reais

Por Cinthya Oliveira
Publicado em 07 de setembro de 2021 | 03:00
 
 
 
normal

Aos poucos, o ensino presencial vai sendo retomado nas escolas e o home office vai deixando de ser opção para trabalhadores das mais diferentes áreas. Mesmo com o uso de máscaras e medidas de distanciamento, as atividades vão voltando à “normalidade”. Mas nem todos estudantes e trabalhadores se sentem à vontade para o retorno ao contato com o mundo que vai além do ambiente doméstico.

Além do medo da Covid, existe uma resistência em retomar uma vivência de contatos humanos muito mais complexos do que as ferramentas virtuais proporcionam. Essa realidade é observada em várias partes do mundo. No exterior, o medo de voltar às atividades presenciais ganhou até nome: FORTO (“fear of returning to the office”, medo de voltar ao escritório).

Teresa Kurimoto, professora da Escola de Enfermagem da UFMG e especialista em saúde mental, explica que os relacionamentos humanos são as principais fontes de sofrimento para as pessoas e muitos preferem evitar os contatos. “Uma parcela da população privilegiada que pôde ficar em casa ficou no quarto vivendo pela janela da tela. Houve embate com o outro e consigo mesmo, mas isso ficou mais diluído no ambiente virtual. É muito importante ter redes sociais e fazer chamadas de vídeo para ter contato com os outros, mas eu posso desligar, posso bloquear”, explica a professora. “O embate termina quando desligo um botão. Mas no presencial, não é possível bloquear o outro”.

A especialista lembra que a pandemia proporcionou à grande parte da população um processo reflexivo sobre o cotidiano, sobre as relações que cada um de nós tem com o outro, com o trabalho, com a natureza, com o consumo. Foi preciso encarar que o mundo se transformou. “É preciso viver o temos agora em vez de ficarmos esperando por uma volta a uma realidade que tínhamos no passado”, diz.

Para muitos trabalhadores, não é possível manter a labuta de maneira virtual, especialmente com o avanço da vacinação. O comediante Ricardo Bello, 43, é um dos muitos profissionais que ficaram reclusos durante toda a pandemia e decidiram retomar o trabalho presencial somente após a imunização completa (duas semanas após a segunda dose).

Ele manteve o contato com o público por meio de vídeos na internet e, em breve, vai encarar um público diferente, de máscara no rosto. "Há alguns meses, as pessoas começaram a me perguntar sobre apresentações presenciais, mas eu sempre deixei claro que só retomaria depois de tomar as vacinas", diz. 

Bello deseja que a plateia mantenha os cuidados de distanciamento e a segunrança durante as apresentações. “Espero que o público esteja consciente. Porque pelo que vemos nas redes sociais é que as pessoas estão vivendo como se fosse verão nos anos 90, como se não tivesse pandemia”.

Covid ainda é temor para quem retomou presencial

Muitos trabalhadores que já retomaram o trabalho presencial ainda convivem com o temor intenso da contaminação pela Covid. O professor Victor Coelho, 33, conta que os protocolos bem seguidos na escola em que trabalha não aliviaram o medo. “Minha maior preocupação neste momento é com o transporte público, que passei 17 meses sem usar, mas agora não posso mais evitar. Outra preocupação grave é o crescimento das bolhas, mas as salas físicas não aumentarão de tamanho”, diz Victor, que é pai de dois bebês e tem medo de contaminar os filhos.

A ativista cultural Carem Abreu, 50, só assumiu um novo trabalho por contas das medidas de segurança rigorosas do local. Mas ela sente que sua relação com o mundo não será mais o mesmo. “O meu receio está no fato de que eu, que me sinto muito bem em meio a várias pessoas, não ter mais isso. Hoje se encontro uma pessoa e ela não fez um teste de PCR, tenho muito dificuldade de me aproximar. Se entro em um local de alimentação e tem alguém sem máscara, nem consigo me alimentar naquele local”, relata.

Mas a volta ao presencial pode ser extremamente benéfica, especialmente para quem sofreu muito durante o isolamento. O assessor parlamentar Pedro Munhoz, 41, diagnosticado com ansiedade e depressão, voltou a trabalhar presencialmente em maio e diz que isso, aliado ao tratamento e à terapia, tem feito muito bem à mente. “O isolamento foi horrível para mim. Tinha acabado de me separar e, por causa da ansiedade, não conseguia assistir a filmes e lives como as outras pessoas. No início, senti medo e incerteza na volta ao presencial, mas a comunicação é muito mais fluida no contato real”, conta.

Fragilidade emocional e psíquica

Confira entrevista com Helian Nunes, psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da UFMG, sobre a dificuldade que algumas pessoas têm em retornar às atividades presenciais:

Por que muitas pessoas se adaptaram bem a uma vida mais reclusa e podem ter dificuldade em retomar as atividades do cotidiano que envolvem contato com outras pessoas?

É verdade, muitas pessoas terão algumas pequenas dificuldades para retorno as atividades que envolvam contato com outras pessoas. Mesmo ocorrendo um cenário mais seguro na pandemia. Existem pessoas, que por características individuais de personalidade ou contextuais, sentiram-se bem melhor numa vida mais reclusa. Mas também existem pessoas que adoeceram mentalmente e se tornaram mais frágeis, sentindo-se naturalmente mais seguras em casa.

Quais são os transtornos que podem potencializar o medo de voltar à "nova normalidade"? 

Transtornos mentais ansiosos ou depressivos, além de outros transtornos mentais, podem potencializar as dificuldades e o medo para o retorno as atividades prévias que o indivíduo realizava anteriormente com tranquilidade. Muitos transtornos mentais acentuam os sentimentos de medo e insegurança, deixando as pessoas mais frágeis e com dificuldade de readaptação as rotinas ou atividades que realizavam bem anteriormente à pandemia.É importante neste contexto de maior fragilidade emocional e adoecimento, buscar uma ajuda de profissionais da saúde qualificados para cuidados em saúde mental.

Quais são os grupos etários que podem ter maior dificuldade em voltar a desenvolver atividades de trabalho, estudo e socialização? Crianças, adolescentes, idosos podem ter maior dificuldade?

Todos os grupos etários podem ter dificuldade no trabalho, estudo ou interação social. Porém, mais frequentemente jovens e idosos podem apresentar  vulnerabilidades.

Por que as relações interpessoais de maneira presencial são importantes para o ser humano? Por que o contato virtual não substitui completamente o contato físico, mesmo que à distância?

As relações interpessoais proporcionam possibilidades de troca afetiva e de saberes, que são fundamentais para a formação do ser humano, aprendizado e suporte. As diferentes formas de contato virtual representam tecnologias ou recursos importantes para a comunicação. Sem dúvida a transformação digital dos meios de comunicação e interação, ajudou muito a maior parte da população na pandemia, mas não substitui completamente o contato físico. Na interação presencial há um maior número de estímulos, que tornam a experiência do encontro mais complexa e enriquecedora existencialmente, possibilitando uma comunicação não apenas visual, verbal ou escrita, como são possibilitadas nos recursos virtuais de comunicação.  Apesar de que, para algumas pessoas mais tímidas, a interação remota pode representar uma forma inicial bem interessante para enfrentar os medos e inseguranças no primeiro contato ou abordagem de temas mais específicos para os quais haja alguma inibição individual ou coletiva.

É importante incentivar a pessoa a encarar o mundo, encarar a relações presenciais, ou é possível ter bem-estar e mente sã ficando mais recluso em casa?

Para encarar mais tranquilamente as relações presenciais, obviamente precisamos muito que haja um maior avanço nas medidas preventivas (uso de máscaras e espaços ventilados) e maior vacinação da nossa população nesta pandemia. É importante incentivar as relações presenciais, ofertar oportunidades para vivenciar os desafios e encarar o mundo. Entretanto, pessoas muito fragilizadas ou em sofrimento mental, não podem ser obrigadas a interagir socialmente. Deve-se ofertar oportunidades e convidar, mas o indivíduo não precisa sentir-se obrigado. Pode até tentar aceitar um convite de interação, mas se não estiver confortável, não tem a obrigação de seguir em frente, pode retornar para onde sinta-se mais seguro. Pessoas mais fragilizadas poderão e precisarão aguardar um momento melhor para readaptação as atividades presenciais que realizavam anteriormente. Ou seja, cada um precisará do seu tempo ou até de uma ajuda para lidar com a travessia deste momento pandêmico em nossa sociedade, muito difícil para a maior parte da população, especialmente para os mais vulneráveis. É importante que todos estejam atentos e respeitem de forma empática as dificuldades de cada um ou de grupos específicos nas diversas fases da pandemia.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!