Médicos pediatras que trabalham nas Unidades de Pronto Atendimento de Belo Horizonte (UPAs) estão sendo investigados por supostamente agirem para “boicotar” o sistema de saúde pública do município. A denúncia, que é apurada pela Secretaria Municipal de Saúde, acusa os profissionais de “dormirem a noite toda” durante os plantões, além de agirem de forma organizada para coagir enfermeiros e outros profissionais a fim de limitar o número de atendimentos diários.
A denúncia surge em um momento complicado para a saúde do município. Em meio ao recrudescimento da pandemia do coronavírus e a alta de doenças respiratórias, as crianças que dependem de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) estão tendo de encarar hospitais lotados e filas de espera que chegam a 10h.
A primeira vez que a apuração foi revelada pela prefeitura foi no dia 17 de maio, no entanto, o conteúdo da denúncia permanecia em sigilo desde então. O caso se tornou público após um pedido de informação do vereador Gabriel Azevedo (sem partido), que foi respondido na última quarta-feira (15) durante a 19ª Reunião Ordinária da Comissão de Saúde e Saneamento da Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Segundo a denúncia feita de forma anônima à PBH e que deu origem a investigação, os pediatras da rede de urgência de Belo Horizonte estariam se organizando em grupos de WhatsApp para boicotar os plantões, apresentando falsos atestados de afastamento.
“É só solicitar o índice de absenteísmo em cima da hora por muitos motivos. Um deles é se um adoece o outro 5 minutos depois adoece também desfalcando o plantão”, detalha o denunciante.
A acusação também aponta que esse movimento está acontecendo há meses - sem especificar o tempo - sob o conhecimento do Sindicato dos Médicos. A organização, inclusive, era orquestrada em grupos de WhatsApp.
Além dos afastamentos suspeitos, o denunciante vai além e cita que os médicos estariam atuando de forma coercitiva para minimizar o número de atendimentos nas UPAs de Belo Horizonte.
“Começam a forçar o encerramento do atendimento de porta mesmo estando nas unidades quando não há pediatria no próximo plantão já quando iniciam a jornada. Pressionam as equipes. todo mundo! Tem pediatra que mesmo com zero atendimento após 23:00 já iniciam a pressão na equipe para que o atendimento encerre às 02:00 da manhã e assim a enfermagem e recepção ficam incumbidos de forma coercitiva a dizer para os pais que chegam com seus filhos doentes que não pediatria, mesmo com o profissional na unidade DORMINDO. Pois muitas vezes esses profissionais são ameaçados pelos pediatras de que se acontecer da porta encher a responsabilidade é do enfermeiro e do recepcionista”, descreve.
O sono dos médicos, inclusive, é um capítulo a parte tratado pelo denunciante. “É de conhecimento de TODOS que os pediatras hoje dormem a noite toda e que a enfermagem precisa chamá-los o tempo todo no descanso em qualquer horário do dia inclusive. A maioria das UPAs e hospitais contam com quartos exclusivos para esses profissionais com ar condicionado, camas e até mesa para lanches. Chave própria inclusive. Em algumas UPAs quando é possível ter o terceiro pediatra, esses profissionais EXIGEM que seja fornecida cama para TODOS ao mesmo tempo”, diz o relato anônimo.
Segundo a denúncia apurada pela prefeitura de Belo Horizonte, o motivo para o suposto “boicote” dos médicos seria a falta de um terceiro pediatra para compor as equipes durante os plantões. Atualmente, esse trabalho é feito em dupla, apesar dos vários relatos de equipes que estariam atuando desfalcadas devido a falta de profissionais contratados.
Iniciada em 17 de maio, a Sindicância Administrativa sobre o assunto deveria ser concluída nesta-sexta pelo prazo regimental (30 dias), mas o prazo pode ser estendido por mais 30 dias caso haja necessidade.
Quem vai decidir se há irregularidade ou não na denúncia que foi apresentada é a Comissão de Sindicância composta por três integrantes da Secretaria Municipal de Saúde.
Autor do requerimento que resultou na divulgação da denúncia, o vereador Gabriel Azevedo alega que é preciso ‘cautela e seriedade’ para avaliar tudo o que foi apresentado à Prefeitura de Belo Horizonte.
Ouvido pela reportagem de O Tempo, Azevedo disse que, nesse momento, ainda é necessário aguardar o desdobramento da investigação conduzida pela Secretaria Municipal de Saúde para avaliar o que pode ser feito.
“Qualquer denúncia envolvendo suposta ação coordenada por servidores em desfavor do município causa preocupação. No entanto, é necessário agir com a cautela e seriedade para apurar a veracidade das alegações e identificar eventuais responsáveis”, alega o vereador.
Caso seja constatada alguma irregularidade apresentada na denúncia, Gabriel defende uma atuação do Poder Legislativo na apuração. “Eventualmente, caso o resultado demonstre o cometimento de crime ou caso surjam novos elementos, há possibilidade de uma atuação excepcional do Poder Legislativo”, explica o vereador que ressalta a importância da apuração. “No momento cabe acompanhar e aguardar a apuração dos fatos pelos membros da sindicância instaurada pela prefeitura de Belo Horizonte”, finaliza.
Citado na denúncia, o Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), nega qualquer relação com o “boicote” e rebate a acusação, alegando que “colocar a culpa nos médicos é fácil”, diz o trecho da nota.
Confira a resposta na integra:
O Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG) tomou conhecimento da denúncia contra pediatras da rede de saúde pública de Belo Horizonte, lida durante reunião da Comissão de Saúde e Saneamento da Câmara de Vereadores, na quarta-feira, 15 de junho, e destaca seu posicionamento como entidade representativa da categoria médica em mais de 700 municípios mineiros.
A situação da pediatria tem sido um ponto de grande preocupação do Sinmed-MG, há muitos anos, e desde sempre alertamos os gestores, sejam municipais ou o governo do estado, para o cenário que já mostrava sinais de desassistência, falta de segurança e condições adequadas além de equipes incompletas para atender a alta demanda. Com a pandemia, esse quadro se agravou ainda mais e nada foi feito para mudar a situação da saúde.
Reforçamos que o Sinmed-MG jamais foi e será conivente com qualquer atitude que possa trazer prejuízos na assistência à saúde da população. Isso pode ser comprovado nas solicitações feitas durante as várias reuniões com os secretários de saúde e demais gestores, nos ofícios, no acionamento ao Ministério Público e outras medidas jurídicas; tudo em busca de solução para essa crise.
Nossa entidade informa rotineiramente à imprensa a gravidade de problemas como as equipes incompletas que acabam sobrecarregando os pediatras: muitas vezes, esses profissionais ficam em plantões de mais de 12 horas seguidas, pois não há outros colegas que possam substituí-los.
Com isso, o desespero e o adoecimento dos médicos têm-se elevado; sem falar que muitos estão pedindo demissão de seus postos de trabalhos por não aguentarem a pressão e a falta de iniciativas por parte dos gestores.
Colocar a culpa nos médicos é fácil quando se tem à frente problemas reais que a gestão não resolve como, por exemplo, as equipes incompletas, a falta de segurança e de equipamentos, as condições inadequadas de trabalho e tantos outros já apontados pelo Sinmed-MG.
Não somos favoráveis jamais a nenhuma atitude de desrespeito à saúde da população e apoiamos o atendimento justo e digno que os pacientes merecem. Além disso, buscamos mais dignidade, segurança nas unidades de saúde e respeito aos profissionais.
A negligência dos órgãos responsáveis pela gestão da saúde é grande e não aceitamos culpar os médicos e o Sinmed-MG pelo descaso com o que tem ocorrido.
É necessário solucionar a crise da falta de médicos, especialmente de pediatras, por meio de uma contratação justa e de medidas que possam fixar o profissional na rede.Essa tem sido nossa batalha.
Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde explicou que não teve a intenção de transferir o problema e nem de acusar nenhum profissional previamente. “O objetivo da apuração é entender a situação para tomar as devidas providências. A SMSA reforça que respeita o direito do profissional de se ausentar por motivos médicos e que tem empreendido todos os esforços para garantir melhores condições de trabalho e de assistência à saúde da população do município”, diz a pasta em nota enviada à reportagem.
Confira a resposta na íntegra:
A Secretaria Municipal de Saúde informa que, em 17 de maio, recebeu denúncia anônima relacionada ao atendimento pediátrico de urgência no município. À época, de acordo com os protocolos municipais, instaurou sindicância administrativa para apurar os fatos.
Desde o início, esta sindicância tem seguido todos os preceitos éticos, morais e legais, e não se trata de um pré-julgamento sobre os profissionais.
O objetivo da apuração é entender a situação para tomar as devidas providências. A SMSA reforça que respeita o direito do profissional de se ausentar por motivos médicos e que tem empreendido todos os esforços para garantir melhores condições de trabalho e de assistência à saúde da população do município.
Frente às dificuldades na assistência, a SMSA esclarece que os profissionais médicos, principalmente pediatras, têm sido importantes parceiros no atendimento de urgência de Belo Horizonte.