Exatamente quatro meses após as mortes de 69 cães em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a Polícia Civil (PC) deu detalhes da reviravolta do caso. Segundo a instituição, a dona do lar temporário "Entre Latidos e Miados" teria dado remédio de rato, conhecido popularmente como “chumbinho”, para os animais. A intenção, conforme as investigações, seria eximir da responsabilidade em relação ao transporte dos cachorros, que ficaram debilitados, dissimular as mortes e desviar o foco da polícia.
O caso aconteceu no dia 14 de março deste ano. “Quando ficamos sabendo das mortes dos cães, a proprietária do lar temporário registrou um boletim de ocorrência afirmando que os cães dos seus clientes tinham sido envenenados e que, possivelmente, poderiam ter jogado por cima do muro da casa salsichas. Segundo a versão dela, ela fez o transporte de Ribeirão das Neves de forma adequada, em uma van refrigerada e quando os animais chegaram em Contagem foi constatado que começaram a passar mal e muitos faleceram", explicou a delegada Stefhany Martins.
Apesar da versão apresentada pela mulher de 48 anos e o marido dela, de 38, a polícia afirma que o envenenamento teria acontecido já em Contagem. Naquele dia, de acordo com o inquérito, 73 cães foram colocados dentro de um caminhão-baú fechado, sem ventilação ou sistema de refrigeração. Além disso, os animais teriam ficado soltos no compartimento, sem nenhuma caixa de proteção por cerca de uma hora e meia.
"Ao abrir o baú, todos os animais já estavam debilitados e alguns sem vida. A proprietária do lar temporário ao perceber que os cães estavam morrendo, ela passou a afirmar para algumas testemunhas que os cães tinham sido vítimas de envenenamento. Então, ela passou a ministrar na boca de cada cão uma substância enegrecida dizendo ser carvão ativado. Contudo, nos exames periciais foi constatado a ausência de carvão ativado no conteúdo estomacal dos cães e foi encontrada a substância popularmente conhecida como 'chumbinho'. Diante disso, nas investigações, nós podemos confirmar que a investigada utilizou-se do chumbinho como forma de dissimular as mortes de diversos cães, de tentar desviar o foco das investigações para a real causa da morte e também tentar criar um álibi pelo crime cometido ao transportar os animais", detalhou a delegada.
Depoimentos de testemunhas
Ao todo, 25 pessoas foram ouvidas durante as investigações. Algumas testemunhas contaram que os animais foram colocados no caminhão-baú por volta das 13h, em Ribeirão das Neves. O casal ainda teria molhado os cachorros e o marido da suspeita acompanhou aos cães dentro do baú. No entanto, após 15 minutos do trajeto, o homem não teria suportado o calor dentro do veículo e pediu para ficar dentro da cabine do caminhão.
"Após isso, os funcionários que eles contrataram para fazer a mudança afirmaram que os cães pararam de latir e pediram que o investigado fosse averiguar a situação dos animais. Sendo que o marido da dona do lar temporário preferiu não atender aos alertas e preferiu seguir a viagem. No cumprimento do mandado de busca e apreensão tentamos encontrar o carvão ativado usado no dia das mortes, mas a proprietária e o marido afirmaram que o carvão utilizado foi em sachê, que estava dentro da geladeira, e já havia acabado. Questionamos os investigados como que eles usaram apenas dois sachês em tantos cães e eles afirmaram que usaram carvão de churrasqueira, moeram o carvão e aplicaram na boca dos animais. Mas não foi encontrado no estômago dos animais", disse Stefhany.
Novo lar temporário com renda mensal de R$ 10 mil
Ainda segundo a polícia, as investigações apontaram que com a mudança do lar temporário para um espaço maior, o casal planejava uma renda mensal de R$ 10 mil. No antigo imóvel, a suspeita recebia, por cada dono de animal, o valor de aproximadamente R$ 160 e um saco de ração mensalmente. A mulher ainda teria pedido de cada dono R$ 30 para transportar os cachorros de "forma adequada".
"Ao vistoriar o local em Contagem, nossa equipe percebeu que ele não possuía telhados e tinha uma estrutura precária para receber novos animais. Ela afirma que há 15 anos trabalha nessa área, sabia o que era ou não maus-tratos. A investigada levaria os cães em um caminhão gaiola, que já tinha sido reservado, mas, no dia do transporte, o motorista desmarcou. Para simplificar a logística da mudança, o marido dela sugeriu que os animais fossem no caminhão que seria responsável por transportar a mobília da família", frisou a policial.
Segundo a delegada, a causa morte de 20 animais foi devido ao transporte - além do veículo fechado, muitos machucaram durante o trajeto. Dos 73 animais, 58 morreram no imóvel, 11 foram socorridos, mas também foram a óbito, quatro sobreviveram e foram entregues aos donos.
Os investigados seguem em liberdade. "A dona contou que tinha esse lar há dois anos. Protetores resgatavam animais nas ruas e pagavam mensalmente para que eles fossem alocados na casa dela até uma adoção. Ela também disse que o lar funciona como um hotel para cães e que não possui nenhuma tipo de autorização para funcionar", disse a delegada.
Defesa aponta falha em investigação
Três advogados do casal investigado acompanharam a coletiva da Polícia Civil e, posteriormente, apontaram falhas nas investigações.
“A gente tem que analisar o ponto da investigação que foi trazido pela delegada na entrevista. Essa investigação partiu de um método indutivo, individual para o geral. A investigação criminal precisa ser da hipótese geral até chegar aos autores. Só dois autores foram investigados, que são os indiciados. Por isso não é surpresa para gente”, afirmou o advogado Thiago Pedrosa.
Para ele, a polícia deveria ter feito um trabalho “um pouco mais dedicado e ter verificado vizinhos e ameaças que a cliente sofre”.
“Se a minha cliente tivesse feito isso, que se comprovasse. Agora, deixar de investigar ou apurar a verdade, perde a sociedade. Quem fez isso está saindo impune”, afirmou.
Sobre o uso do chumbinho, a defesa afirmou que a cliente tinha sido ameaçada antes das mortes por pessoas que arremessavam coisas na casa da família.
"A doutora delegada fala que colocaram o chumbinho depois que eles saíram (de Ribeirão das Neves). Pra quê a minha cliente ia matar os cães que eram fonte de renda dela? As normas regulamentares de transporte de carga foram estritamente seguidas. Me aponte a delegada ou qualquer investigador a norma regulamentar que nós infrigimos. Nenhuma", afirmou.
Para finalizar, o advogado afirmou que a defesa espera o inquérito ser encaminhado ao Ministério Público. "A gente espera que o promotor zele e seja promotor de Justiça e não de acusação e veja o absurdo que foi feito. Mas, se houver a denúncia do processo, eu tenho certeza que o Poder Judiciário vai mostrar a verdade, inocentar meus clientes e correr atrás dos infratores que estão soltos", finalizou.
Além da defesa, a reportagem de O TEMPO procurou a investigada, mas as ligações não foram atendidas.
Crimes
O casal foi indiciado pelos crimes de maus-tratos aos animais por 73 vezes e fraude processual. O crime de maus-tratos, ao todo, pode gerar uma pena de, ao menos. 15 anos de reclusão. Já a fraude processual de um a dois anos de prisão.
Parceria com universidade
A conclusão do inquérito policial que apurou a morte dos cachorros foi possível graças à parceria com alunos e professores do curso de medicina veterinária do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Em entrevista à reportagem de O TEMPO, o professor responsável pelo trabalho, Aldair Junio Woyames Pinto, enfatizou a importância do estudo de necropsia dos animais.
"Existe uma área da medicina veterinária que se chama medicina veterinária legal. Quando se trata de pessoas, os peritos são treinados pela academia de polícia para poder fazer as perícias com pessoas. Só que as perícias com animais precisam de exclusividade do médico veterinário, porque ele detém o poder de saber se aquilo é maus tratos ou se não é. E essa é uma área que o UniBH explora bem", disse.
Com relação a esse caso de Ribeirão das Neves, Pinto explicou que ele foi ver a situação de perto antes mesmo das investigações começarem. "Nós fomos acionados por algumas pessoas que tinham animais lá. Eu e mais um aluno fomos ao local e constatamos que a situação não condizia com a fala dos donos. Naquele momento, por uma questão instintiva, sugerimos fazer a necropsia e só então a polícia foi acionada", explicou.
Participaram dos trabalhos uma equipe de aproximadamente 15 alunos do 5º período de medicina veterinária da universidade e que também são componentes do Grupo de Estudos de Patologia (Gepat). Os cães foram necropsiados em dois dias e meio e, neste momento, encontram-se em uma câmara fria aguardando o aval da PCMG para a cremação.
(Com Gabriel Moraes)