Pelo menos quatro dos policiais que participaram da operação que terminou com 26 suspeitos do "novo cangaço" mortos na cidade de Varginha, no Sul de Minas Gerais, teriam atuado no "sequestro" de dois dos mortos, que teriam sido contratados para ajudar na fuga dos criminosos após o assalto a banco planejado pelo grupo. Durante a operação, os policiais ainda teriam torturado os dois suspeitos e, na sequência, os executado. A informação consta no inquérito que terminou com o indiciamento de 32 policiais, sendo 16 Policiais Rodoviários Federais (PRF) e 16 Policiais Militares de Minas Gerais (PMMG).
O TEMPO teve acesso ao relatório completo que foi remetido à Justiça, onde os investigadores da PF denunciam uma série de irregularidades na ação das polícias, entre elas o sequestro, tortura e execução dos dois suspeitos que estariam no caminhão que seria usado na fuga.
Conforme o inquérito, a perícia identificou que dois dos corpos que foram entregues na UPA de Varginha apresentavam "características de ferimentos que destoavam do padrão dos demais mortos na ação policial". A PF identificou os corpos como sendo do motorista do caminhão que daria fuga aos ladrões e de um dos mentores do assalto.
A hipótese apresentada é a de que os homens teriam saído de Uberaba, no Triângulo Mineiro, e seguido para Varginha. O veículo com a dupla chegou a um posto de combustíveis em Muzambinho, cidade localizada a cerca de 2h do local onde o assalto aconteceria, por volta das 22h do dia anterior à operação policial que terminaria com ambos mortos.
Câmeras de segurança mostraram que, às 2h52, cerca de duas horas antes do início da operação, uma caminhonete chegou ao estabelecimento e, pouco depois, três agentes desceram do veículo, que era conduzido por um quarto policial, e levaram juntos os dois criminosos.
"Os cadáveres foram apresentados na UPA de Varginha como se tivessem sido mais dois roubadores a confrontar a polícia no sítio 1. Laudo necroscópico de um dos corpos permitiu a estimativa de horário de sua morte entre a tomada de sua última refeição, provavelmente ocorrida após aquisição de alimento às 22h55 do dia 30 de outubro, e antes do início do confronto (aproximadamente 5h do dia 31)", pontuou a PF.
A instituição destacou ainda que, no sítio, não foram encontrados registros biológicos do motorista do caminhão, que tinha duas lesões de tiro, uma no tórax e outra no abdômen, sendo que um dos disparos ocorreu com vítima e atirador em pé e, o segundo, com o suspeito já deitado e o atirador acima dele.
Em outro ponto do documento, a PF pontua que o homem que seria um dos idealizadores do crime tinha cortes no tórax, membros superiores e inferiores, além de lesões no rosto que tinham indícios de terem ocorrido quando ele ainda estava vivo. "Eles foram levados para Varginha, sofreram torturas físicas e psicológicas neste itinerário e tiveram seus corpos enleados (misturados) entre aqueles que foram mortos no sítio 1”, concluiu a corporação.
A perícia técnica ainda identificou que o motorista do caminhão teria sido morto em local desconhecido e, depois, levado para a UPA, enquanto o idealizador do assalto teria sido levado com vida até um dos sítios, onde, enfim, foi baleado e morto. Os ferimentos teriam apontado para a perícia técnica que os disparos não teriam ocorrido no momento da entrada tática dos policiais, mas após isso.
PM diz que competência é da Polícia Judiciária Militar
Em nota, a Polícia Militar de Minas Gerais afirmou que "a investigação do crime militar é de competência EXCLUSIVA da Polícia Judiciária Militar", com base "nos termos do art.125, §4º da Constituição Federal de 1988, combinado com o art.144, §4º da CF/88, e de acordo com o art. 142, inciso III, da Constituição do Estado de Minas Gerais, e art.7⁰, "h", do Decreto Lei 1002/69".
Corregedoria da PRF reabriu inquérito em 2023
Diante do indiciamento dos policiais envolvidos na operação, a reportagem de O TEMPO procurou a assessoria de imprensa da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que informou, por nota, que colabora com os órgãos competentes para o "esclarecimento de todos os aspectos da ocorrência", completando ainda que, em 2023, a Corregedoria-Geral da PRF reabriu procedimento apuratório "frente ao surgimento de novas evidências".
A PRF destacou ainda na nota que a operação deflagrada ao lado da PMMG visava o combate a um "grupo criminoso dedicado à tomada de cidades", na prática conhecida como novo cangaço.
"Na ocorrência, um farto armamento foi apreendido: metralhadora .50, fuzis de grosso calibre, pistolas, dezenas de quilos de explosivos e grande quantidade de carregadores e de munições. A PRF destaca o compromisso com os limites constitucionais e a defesa do estado democrático de direito, incluídos o princípio da presunção de inocência dos agentes, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa", concluiu a corporação.
Também indagado, o Ministério Público Federal (MPF) confirmou ter recebido o relatório policial na tarde de terça-feira (27). "Ele agora será analisado, para verificar se serão necessárias novas diligências. Quanto à investigação do MPF, ela estava suspensa aguardando o resultado das perícias criminais e deverá retomar o curso de agora em diante", completou.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) foi questionado se poderá pedir o afastamento dos policiais estaduais envolvidos, mas ainda não se posicionou. Também procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da PMMG informou apenas que "acompanha o caso".
Sindicato sai em defesa de policiais
Ouvido por O TEMPO nesta quarta, o Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais no Estado de Minas Gerais (SINPRF-MG), informou que o seu corpo jurídico está analisando a denúncia da PF, mas se manifestou com "total apoio" aos policiais rodoviários e militares "que arriscaram a vida em prol da sociedade de Varginha".
"(...) enfrentando indivíduos com extensa ficha criminal, e que efetuariam crime de domínio de cidade, colocando em risco os honrados cidadãos da cidade. Recebemos, estamos analisando e daremos todas as informações tão logo tenhamos o relatório analítico do jurídico do SINPRF-MG", concluiu a entidade.
PF pode indiciar policiais militares pelas 26 mortes?
A partir de agora, cabe ao MPF avaliar a possibilidade de apresentação de denúncia com base nas provas colhidas e investigação própria. Em nota o órgão disse que vai avaliar possível retomada das apurações sobre o caso que estavam suspensas "aguardando o resultado das perícias criminais". Se o Ministério Público entender que cabe denúncia, o próximo passo é o julgamento em um Tribunal do Júri. Ao longo dos próximos passos, a própria Justiça pode entender que cabe à PM essa apuração e encerrar a investigação.
Relembre a operação
As forças de segurança começaram a investigar o grupo em agosto de 2021. No fim de outubro, após informações indicarem sobre um novo assalto em Varginha, foi montada uma operação conjunta entre a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Na manhã de 31 de outubro, os policiais adentraram duas chácaras em que estavam os suspeitos. Conforme a versão oficial da PMMG, na primeira, foram 18 suspeitos mortos; na segunda, outros oito, totalizando 26. A corporação também divulgou que foi recebida com tiros pelos suspeitos.
A ação chegou a ser comemorada pelas autoridades, à época. A porta-voz da PMMG, capitão Layla Brunnela — atualmente major —, disse que aquela era a maior operação referente ao “Novo Cangaço” no país e que “muitos infratores fariam um roubo a banco, naquele dia ou no dia seguinte, e foram surpreendidos pelo serviço de inteligência da PM integrado com a PRF”.
A PRF informou, por meio de nota, que "a quadrilha possuía um verdadeiro arsenal de guerra sendo apreendidos fuzis, metralhadoras ponto 50, explosivos e coletes à prova de balas, além de vários veículos roubados. Foram arrecadados ainda diversos “miguelitos” (objetos perfurantes feitos com pregos retorcidos usados para furar os pneus das viaturas policiais)".