Em meio à pandemia da Covid-19, a reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sandra Regina Goulart Almeida, analisa os rumos da instituição e fala sobre o "novo normal" da universidade, uma vez que a reunião de cem pessoas em uma sala de aula com ar-condicionado e janelas fechadas, como ocorria até o semestre passado, é inviável no momento, dado o risco de propagação do coronavírus.
Abaixo você confere a íntegra de entrevista com a reitora, que falou sobre o planejamento para retomada das aulas, de questões orçamentárias e do Future-se e ainda do adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Os colegiados dos cursos da UFMG têm até esta segunda-feira para enviar consulta feita aos seus corpos docente e discente. O conteúdo servirá de baliza para a proposta a ser elaborada pela reitoria e apresentada à comunidade acadêmica.
Como a senhora avalia a versão do Future-se enviada ao Congresso?
Olha, realmente, nós fomos pegos de surpresa com o envio dessa versão do Future-se. Ainda não vimos, não temos conhecimento. Como sempre, e eu já disse mais de uma vez, a UFMG não se furta a avaliar e discutir as propostas, mas realmente não conhecemos a versão como ela foi enviada ao Congresso. Nós conhecemos várias outras versões que foram encaminhadas. Ela foi modificada em várias questões, temos críticas à maneira de implementação, mas eu não sei lhe informar sobre a versão que foi enviada ao Congresso Nacional ainda. Claro que nós vamos nos debruçar sobre ela e vamos avaliar quais são os impactos que podem advir dessa proposta.
Como foi visto o adiamento do Enem por causa da pandemia?
Essa foi uma questão que para nós foi muito importante. A UFMG se manifestou, várias associações se manifestaram pelo adiamento. Para nós, essa foi uma decisão muito importante. Claro que não sabemos precisar com relação ao tempo, mas estava claro que novembro era muito próximo, o que prejudicaria principalmente os estudantes mais vulneráveis, que não têm tido possibilidade de ter acesso a aulas remotas.
Nós temos um problema seriíssimo de desigualdade digital no Brasil. Essa era nossa grande preocupação, principalmente porque a UFMG tem 56% dos alunos vindo de escolas públicas hoje em dia.
Falando em acesso digital, a grande questão do momento é a retomada das aulas na UFMG. Como fica o primeiro semestre, como tem sido planejado? Qual tem sido a posição da instituição em relação à retomada das aulas?
A primeira questão que eu gosto sempre de dizer é que a UFMG não está parada, as atividades não estão paradas. Estamos trabalhando, e muito. A UFMG tem cursos de graduação, de pós-graduação, temos também muitas atividades de extensão, de pesquisa e várias ações que continuam em andamento. Pesquisa, extensão, defesa de monografias estão acontecendo no campo virtual; defesas de teses, orientações, eventos foram transferidos para plataforma virtual, como é o caso da Semana de Saúde Mental.
Nós estamos planejando manter, por exemplo, a Mostra das Profissões para os estudantes conhecerem os cursos da UFMG. Vamos manter virtualmente. Ou seja, a UFMG continua atuando. O que não está acontecendo, pela situação grave que vive o país... é que as aulas presenciais estão suspensas. E, na verdade, nós não sabemos quando poderemos retomar essas aulas presenciais. Isso vai depender das autoridades sanitárias. Importante ressaltar que eu nunca disse que a UFMG só vai retomar as aulas presenciais depois da vacina. Eu não disse algo desse jeito. O meu raciocínio é que todos os estudiosos estão dizendo que nós precisaremos conviver com o vírus por muito tempo. Então, como precisaremos conviver com o vírus por muito tempo, nós não sabemos como nós vamos ter que lidar com ele, nós temos que pensar nesse "novo normal".
O que seria esse "novo normal"? É fazermos um planejamento de curto, médio e longo prazo. Aulas presenciais nós não sabemos quando poderemos voltar. Mas o que nós poderemos fazer, que tipo de planejamento poderemos fazer neste momento. A UFMG está neste momento discutindo essas questões específicas com relação a esse planejamento. A UFMG é uma universidade muito grande, é muito diferente de uma universidade pequena, que tem poucos alunos de outras cidades. Cinqueta e um por cento dos estudantes da UFMG são de fora de Belo Horizonte. Nós temos uma configuração bem específica, e é importante que a gente avalie nesse planejamento a qualidade do ensino que a UFMG preza e também a inclusão. Isso pra nós é muito importante.
Um grande problema que nós temos no Brasil é a desigualdade digital, que se traduz em uma desigualdade direta, quando as pessoas não têm acesso nenhum à internet, ou indireta, quando as pessoas têm acesso à internet, a meios digitais, mas de maneira muito precária, geralmente por meio de dados comprados pelo celular com limite. Isso dificulta muito o acesso, e a gente tem uma preocupação muito grande com relação a isso.
Estamos no momento discutindo com a nossa comunidade esse planejamento, partindo do pressuposto dessas duas questões: que será preciso conviver com o vírus por muito tempo e que a UFMG vai ter esse planejamento pensando sempre na qualidade e na inclusão.
Eu tive uma informação da possibilidade da retomada da pós-graduação remotamente em julho. É uma possibilidade?
Isso não foi avaliado. Nós estamos, como eu disse, nesse momento de planejamento. Estamos fazendo consulta aos colegiados de graduação, aos programas de pós-graduação. Fazendo uma análise com relação aos cursos de extensão. E estamos também conversando para ver a questão das pesquisas, dos laboratórios. Nós temos um comitê de enfrentamento do coronavírus, e ele está desenhando os protocolos sanitários que nós teremos que seguir em curto, médio e longo prazo. Então, tudo está discutido. Não há uma decisão final da UFMG com relação a isso. Isso cabe, quem determina mudanças no calendário, quem determina as questões acadêmicas na UFMG, é o nosso Conselho de Pesquisa, Ensino e Extensão. Então, depois de ouvir as propostas que virão da comunidade, nós levaremos essas questões ao conselho e também ao Conselho Universitário da UFMG para que possamos fazer uma resolução.
Sabendo que é difícil manter qualidade e inclusão e retomar as aulas ao mesmo tempo, o que a senhora consegue vislumbrar como "novo normal" na UFMG? E também sabendo que não se pode dar o primeiro semestre por cancelado…
Realmente, o semestre não está suspenso. Algumas datas do nosso calendário tiveram que ser adiadas. Não se suspende um semestre. O que não quer dizer que nós vamos imediatamente retomá-lo. Isso já aconteceu na história da UFMG. Quando não foi possível dar aula, o semestre é adiado até que possa ser retomado. Até mesmo porque as atividades continuam. A UFMG não está parada. O que geralmente acontece é que esse semestre é estendido dentro do calendário civil. Então, o que deve acontecer é que esse primeiro semestre de 2020 vai se estender e que o segundo semestre vai adentrar o primeiro semestre de 2021. Então, será uma nova programação do calendário. Mas não há como simplesmente desaparecer com um semestre. Ele existe até mesmo para garantir os direitos dos estudantes que se matricularam neste semestre e também para os que virão para o semestre seguinte. Eles não precisam ficar preocupados. Haverá o segundo semestre de 2020. Possivelmente não haverá na data que havíamos programado inicialmente.
Adentrar 2021 já está firmado?
Ainda não. Nada disso está definido. É o momento de excepcionalidade. A última vez que tivemos uma pandemia foi há cem anos. Ninguém sabe como lidar. Nós já tivemos momentos em que a instituição esteve parada por um período, e o calendário foi retomado normalmente, e tivemos que adentrar o ano civil seguinte. Isso já aconteceu na história da universidade. Mas é uma situação muito dinâmica, que muda o tempo todo.
Voltando àquela questão, como a senhora vislumbra o "novo normal" da UFMG?
Esse "novo normal" vai depender muito do planejamento que vamos estabelecer daqui para a frente. Mas algumas questões são muito basilares pra gente pensar esse normal. Primeiro, é preciso pensar a educação como um direito. Os estudantes têm o direito de estar lá, de ter essa educação, principalmente em uma instituição pública como a nossa. E tem que ser com equidade, qualidade e inclusão. Temos que considerar a desigualdade digital direta e indireta. Temos que pensar na formação dos nossos professores para essas práticas de ensino pedagógicas que são diferentes das presenciais. É importante a gente conversar sobre isso. Temos que pensar nas condições materiais dos nossos estudantes e também dos nossos docentes. Hoje em dia no Brasil nós temos uma questão muito complicada, que é cooptação de gerações, às vezes uma casa com apenas um computador. Temos que pensar na saúde física da comunidade e também na saúde mental, essa é uma grande preocupação, que tem se tornada crítica em momento de pandemia e isolamento social. E temos que pensar nos protocolos sanitários. Então, esse "novo normal" vai depender de todas essas ações, partindo do pressuposto de que nós sabemos que esse vírus vai ficar com a gente por muito tempo e vamos ter que saber lidar com ele. É um "novo normal" diferente daquele que estávamos acostumados quando começamos as aulas em 2 de março. Não vai ser aquele normal por enquanto. Nós não temos como, por exemplo, ter uma sala com cem alunos como tínhamos, com ar-condicionado e sem janelas. Isso é algo que neste "novo normal" não será possível. Então temos que estudar meios, para que, quando isso acontecer, que não será também em curto prazo, nós tenhamos medidas que sejam possíveis dentro dos protocolos de saúde. Estamos observando o que outros países estão fazendo, e tudo está sendo realizado neste momento não apenas pela UFMG, mas por todas as universidades.
Como estão as consultas aos colegiados e o calendário para discussão desse "novo normal", de um novo calendário?
É muita instabilidade, em termos de que nunca fizemos isso. É um período de excepcionalidade. Sei que é muito difícil falar para as pessoas isso, mas temos que ter calma, agir com prudência e responsabilidade. Não há como fazer de conta que estamos vivendo um período normal. O que a gente sabe é que qualquer decisão da UFMG tem que ser discutida com os colegiados dos cursos de graduação, os programas de pós-graduação, os cursos de extensão, as áreas de pesquisa e toda a comunidade da UFMG (estudantes, docentes, servidores técnico-administrativos). É uma discussão ampla, seguindo a tradição democrática da UFMG. Primeiramente pedimos para que os colegiados façam uma reflexão e apresentem para nós até esta semana e que possamos consolidar as respostas e pensar a proposta que será discutida com a comunidade e também com nossos órgãos colegiados.
No ano passado a instituição teve problema com bloqueio de verba do MEC. Como está o orçamento deste ano?
De fato, conseguimos um respiro no mês passado, com a criação da nova unidade orçamentária, que desbloqueou uma parte do orçamento geral de todas as áreas. No caso da UFMG, 40% do nosso orçamento estava bloqueado e dependia da liberação do Congresso, que, quando aprovou o PLN 08, liberou esses recursos que são contingenciados. Ainda precisa da aprovação presidencial, e estamos aguardando com muita ansiedade. Mesmo que a gente tenha todo o orçamento para 2020 liberado, importante destacar que o orçamento da UFMG é 3,08% menor do que o do ano passado, que, claro, nos preocupa muito, muito. Isso representa R$ 7 milhões para a UFMG. Nós ainda estamos avaliando como será este ano, um ano completamente atípico.
Nesse sentido, o Future-se pode ser visto como uma tentativa de sufocar um pouco esse orçamento para forçar a adesão ao programa?
Nós temos que avaliar ainda. Como eu disse, eu não sei qual é a versão que chegou ao Congresso. Nós tínhamos muitos questionamentos em relação à última versão que foi vista. Muito do que está lá, nós já fazíamos, principalmente a UFMG, que é uma universidade grande, que tem muito pesquisa, ensino e extensão e faz muita inovação. É uma das lideranças do país em inovação, que é o foco central do Future-se. Então, não fazia sentido o que estava ali colocado. Não sei com está a versão neste momento, e temos que avaliar. Mas, sem dúvida, a questão orçamentária é uma preocupação nesse contexto em que a UFMG e as universidades federais terão que atuar fortemente no combate à Covid no nosso país. Lembrando que 95% da pesquisa do país está nas universidades públicas. Então, caberá a resposta para o combate desse vírus da Covid-19 à ciência, e quem produz ciência está dentro da universidade. Nós precisamos ter apoio, investimento. E investimento é imprescindível.
Como avalia o combate à Covid nas três esferas de poder?
Nossa interlocução com o município é excelente, é muito boa. Um dos membros do nosso comitê de enfrentamento, professor Unaí Tupinambás, faz parte do comitê da prefeitura também. A parceria é total. Temos diálogo constante. Recentemente fizemos uma ação conjunta muito importante, que foi a descoberta por pesquisadores da UFMG de vírus em espaços públicos, pontos de ônibus. Imediatamente entramos em contato com o secretário de Saúde, e ele prontamente colocou caminhões de limpeza à disposição e limpamos os espaços. É o que a gente tem que fazer neste momento. A união entre os poderes é essencial. A união entre o poder público e as universidades públicas é essencial. E a nossa parceria com a prefeitura tem sido muito boa nesse sentido.
Com o Estado também temos colaborado. Temos feito muitos estudos e encaminhado ao Estado. Nós fizemos uma parceria para as redes de laboratórios para realizar exames. Temos sete laboratórios da UFMG realizando exame da Covid. Conseguimos junto com Hemoninas zerar uma fila que havia na Funed, num momento crítico.
Nosso contato com a esfera federal é com a Secretaria de Educação Superior e o Ministério da Educação. A secretaria tem dado apoio grande para as ações da UFMG. Nós recebemos inclusive uma verba adicional para ações da Covid.