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Escola permite que indivíduo descubra seus próprios desejos, diz Dunker

Professor da USP e youtuber, Christian Dunker explica a importância da escola para a formação do indivíduo sob a ótica da psicanálise e critica o homeschooling, que pode ser regulamentado pelo Congresso

Por Cinthya Oliveira
Publicado em 12 de julho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Neste momento, dez projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de regulamentar ou descriminalizar a educação domiciliar. A modalidade educacional em que os pais assumem a responsabilidade pelo ensino dos filhos gera um grande debate no universo da pedagogia e do direito. Mas e o que a psicanálise pode dizer sobre o assunto?

De forma básica, a maioria das pessoas sabe que os pais têm grande influência na formação do indivíduo e a educação ministrada em casa, durante a infância, pode ter reflexos no comportamento e nos desejos dos adultos. Mas a escola também tem papel fundamental para a formação do ser humano, segundo a psicanálise.

Professor da USP, psicanalista e apresentador do canal Falando Nisso, no Youtube, Christian Dunker explica que a escola é fundamental para que a criança ou o adolescente possa descobrir seus próprios desejos, independentemente dos desejos impostos pelos pais no ambiente familiar.

Confira entrevista de O TEMPO com Dunker sobre a importância da escola e as questões do homeschooling.

Pela perspectiva da psicanálise, qual é a importância da escola para a formação do indivíduo?

A gente pode dizer que a escola é fundamental no processo em que a gente vai se tornando sujeito. A escola apresenta para criança que existe outra lei diferente da lei da família. Apresenta uma realidade que não é aquela encarnada em pessoas reais que são pai, mãe e parentela, como avôs e tios. Na escola há um movimento de abstração através da simbolização da lei que é crucial para a formação do raciocínio moral. A escola vai passar ideia que a lei se aplica a todos os envolvidos e fazer a criança entender que ela não insubstituível nas relações. Na família, há lugares definidos do pai, da mãe, do avô, do filho, o posicionamento não é móvel. Na escola, há a descoberta de que se pode mudar de lugar.

A escola é também crucial para desenvolvimento da moralidade e do desejo. No universo da família, nosso desejo é capturado pelos desejos dos que cuidam de nós. Ouvimos “aja assim, quero que você cresça assim”. O espaço da escola é impessoal, é a representação do Estado. É onde se pode ser inquirido, perguntado e aprender a perguntar sobre o desejo que vai além dos que seus pais querem para você. E a escola se caracteriza por não dar essa resposta, mas dar um espaço para se elaborar e facultar escolhas.

 

No homeschooling, seria mais difícil elaborar esses desejos...

A criança que fica apenas no âmbito da família vai delimitar suas escolhas pelos desejos dos pais. No homeschooling, o desejo dos pais se impõe. O projeto de lei do Governo procura dar forma jurídica, proteção e regulamentação  para o desejo desses pais de educarem e ensinarem seus filhos conforme suas vontades e não a vontade do Estado.O projeto vai dizer que a família deve seguir preceitos, que os estudantes vão passar por certos conteúdos e provas, mas ignora a força psicológica entre pais e filhos. Tudo isso acontece sem que a criança seja exposta a uma diferença real. É na escola que se entende que os outros não são como você.

 

Os adeptos do homeschooling questionam a qualidade da escola e veem nela um espaço de violência e bullying. Mas é natural que a escola seja um espaço de conflitos, já que é um microcosmos representativo de nossa sociedade, não é mesmo?

Esse é o microcosmos do Brasil, do lugar onde todos vão viver. A escola não é somente a preparação para o mercado de trabalho, mas para todo o universo onde vão se estabelecer. À medida que os conflitos vão acontecendo na escola, temos oportunidade de mediar soluções para os conflitos. Há uma altíssima periculosidade no discurso de se proteger os filhos do bullying. O bullying mais traumatizante é o praticado pelos pais, com alienação parental ou em impor desejo a uma criança. Muitas vezes é o Estado quem tira a criança de uma situação de alienação parental ou violência.

 

Muitos adeptos da educação domiciliar relatam que seus filhos desenvolveram grandes habilidades, souberam ser autodidatas e tiveram uma relação harmônica com outras crianças. Características que não seriam tão bem desenvolvidas nas escolas, segundo eles. Mas a harmonia pode ser uma questão? No fim das contas, não é importante vivenciarmos problemas no processo de amadurecimento?

Um relato de perfeição vem da perspectiva de uma família incapaz de fazer a autocrítica. As próprias escolas estão se questionando sobre o que podemos fazer para se tornarem melhores. O Projeto de Lei (enviado ao Congresso pelo Poder Executivo) não fala em famílias que pensam em ser melhores, mas pressupõe que elas já são suficientemente esclarecidas. Como limitar uma família que se arroga em dizer que tem mais qualitativos pedagógicos e mais virtudes do que tudo que é oferecido no mercado? Essa ideia propõe na verdade um condomínio, dizendo que há muros porque lá fora é perigoso. Vamos ficar entre gente como a gente e isso se chama narcisismo. Quem consegue administrar a totalidade da experiência se chama síndico, não professor.

 

Uma criança que estuda em casa pode ser bem-sucedido em matemática, ciências e outros conhecimentos, mas a escola oferece muito mais do que conhecimento...

A escola vai além da aquisição do saber. A escola é experiência social, política, de relação com outras raças e outro sexo. É onde se encontra o namorado ou a namorada. É onde você se encanta por pessoas. Onde se cria e reformula ideais éticos.

 

Qual sua observação sobre esse processo atual de volta gradual às aulas presenciais nas escolas?

Fomos atravessados pelas férias escolares. O processo vinha se incrementando, as crianças indo cada vez mais para as escolas e os professores ganhando mais destreza nessa alternância de aulas presenciais e on-line. Mas o cenário que dá para antecipar é devastador, especialmente no ensino público. Apenas 6% desses alunos tiveram acesso à banda larga no período da pandemia. A volta é um segundo problema que temos de lidar porque algumas pessoas terão dificuldade, estarão com medo de encontrar o outro, que vão sentir um certo recuo a todo contato social, a refazer laços de amizade. A gente vai passar o próximo semestre em profunda adaptação e elaboração, porque os alunos vão voltar e muitos não vão estar lá, até porque muitos mudaram de escola. E também vai haver o luto por professores e funcionários que morreram de Covid, vai ser um momento de ajuste de contas com lutos pendentes. A escola que quiser retomar de onde parou está equivocada.

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