CORONAVÍRUS

Mortes ‘com CPF’ aumentam 30% no auge da Covid-19

Excesso de óbitos por causas naturais no ano passado já havia sido de 22 mil em Minas e 275 mil no Brasil

Por Cristiano Martins
Publicado em 31 de março de 2021 | 11:08
 
 
 
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O total de mortes registradas pelos cartórios de Minas Gerais neste primeiro trimestre é pelo menos 30% superior ao observado nos mesmos meses de 2020 e na média dos cinco anos anteriores, prévios à crise sanitária causada pelo novo coronavírus. O número ajuda a entender o impacto da Covid-19 e derruba argumentos negacionistas segundo os quais as perdas pela doença estariam sendo inventadas ou superdimensionadas.

De acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) analisados por O TEMPO, foram emitidas 41.577 certidões de óbito por todas as causas no Estado entre janeiro e a última segunda-feira (29). São cerca de 9,5 mil a mais em relação ao padrão dos anos anteriores ― a diferença real é maior, pois há uma defasagem estimada de duas semanas devido aos prazos legais do processo.

Paralelamente, a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) havia confirmado 9.127 vítimas da Covid no intervalo correspondente, até o dia 17 de março. O número de óbitos registrados nos cartórios no período tendo a suspeita ou confirmação do coronavírus como causa era similar, de 9.844.

Em todo o país, o aumento foi de 27% nas certidões, ou aproximadamente 84 mil óbitos a mais em relação ao ano anterior. A Arpen-Brasil e o Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais (Recivil-MG) informaram que o CPF do falecido é exigido desde 2017 para a emissão. Há, inclusive, uma parceria com a Receita Federal para a busca, caso o número seja desconhecido no ato, e o posterior cancelamento. O documento só não seria obrigatório em situações excepcionais, como estrangeiros, "indigentes" ou cidadãos não cadastrados na Receita.

 

Estudo divulgado nesta semana pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) em parceria com a organização internacional Vital Strategies revelou que o excesso de mortalidade em 2020, considerando-se apenas os óbitos por causas naturais, foi de 22% no Brasil e 17% em Minas Gerais. Isso significa 275.587 vítimas no país e 22.513 no Estado acima do previsto a partir da série histórica entre 2015 e 2019. A projeção, com dados do Ministério da Saúde, leva em conta fatores estatísticos e demográficos.

Nem todas essas mortes podem ser atribuídas diretamente à Covid, mesmo com uma possível subnotificação nos dados oficiais da pandemia. Chama atenção, porém, a coincidência entre as curvas, com o excesso de mortes subindo no Brasil a partir de abril e em Minas depois de junho. O maior percentual de excesso (52%) foi registrado no Amazonas, Estado mais afetado pelo vírus no ano passado.

 

 

“Os aumentos das mortes por causas naturais são previstos, principalmente pelo crescimento e envelhecimento da população. Mas a expectativa é que a curva seja razoavelmente estável. Um excesso muito grande normalmente só é dado ou por um desastre, como terremotos e enchentes, ou por epidemias. O excesso no Brasil foi muito acima do esperado”, explica a Dra. Fátima Marinho, consultora da Vital Strategies e uma das autoras do estudo.

A pesquisadora ressalta que o impacto de pandemias na mortalidade populacional é direto, com óbitos causados pela própria doença, e também indireto, devido aos reflexos na superlotação de hospitais ou interrupção de tratamentos contra outras enfermidades crônicas, por exemplo (ouça abaixo).

O acompanhamento dos índices de excesso de mortalidade é uma estratégia recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para avaliar os efeitos das epidemias, principalmente onde há subnotificação por falta de testes ou problemas relacionados ao registro dos óbitos.

"O que nós observamos no Brasil foi o chamado empilhamento da curva, com um número muito maior de óbitos além do previsto, o que não poderia ser explicado se não houvesse um fator intrínseco impulsionando essa curva para cima", analisa o Dr. Fausto Pereira dos Santos, professor de pós-graduação na Faculdade Ciências Médicas e pesquisador do Instituto Feluma.

 

 

Desinformação

Os números indicam que seria impossível “inventar” tantas mortes por Covid-19 apenas substituindo a causa do óbito na declaração, como sugerem correntes conspiratórias nas redes sociais. O tema voltou à tona entre os negacionistas na semana passada depois de uma queda repentina nos registros do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), do Ministério da Saúde, que desde o ano passado inclui os casos de Covid-19.

“A desconstrução desse discurso se dá exatamente por isso. O excesso de mortalidade é um indicador que revela uma situação extraordinária. Se nós estivéssemos em condições normais, sem um fator que estivesse impulsionando a mortalidade, repetiríamos em 2020 e agora no início de 2021 o mesmo padrão observado numa série histórica recente, dos últimos cinco, seis anos”, reforça Pereira.

A redução artificial nos dados do Sivep-Gripe aconteceu após o Ministério ter acrescentado novos campos obrigatórios como CPF, Cartão Nacional de Saúde (CNS), nacionalidade e dados de imunização do paciente. “Depois de exigir documentos, número de mortos por Covid desabou”, escreveu no Twitter o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). "CPF cura Covid" virou um dos bordões mais replicados na rede.

O próprio Ministério da Saúde reconheceu problemas na atualização e recuou no mesmo dia após queixas dos secretários estaduais e municipais, que informaram não terem sido informados previamente e pediram a suspensão temporária da exigência para viabilizar uma transição. Uma servidora ouvida por O TEMPO explicou que a notificação é digitada retroativamente, após as internações, altas e óbitos, e tais dados nem sempre eram coletados no momento da entrada, justamente por não serem obrigatórios até então. Relatos à Folhapress apontaram ainda instabilidade e falhas técnicas decorrentes da mudança no sistema, também admitidas pela pasta.

 

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