Divididos em duas aldeias, a Naô Xohã e a Katurãma, localizadas em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de BH, os índios Pataxó e Pataxó hã-hã-hãe lembram com saudade da época que podiam pescar, lavar roupas e cultuar os ritos nas águas do rio Paraopeba, hoje contaminado com metais pesados em decorrência do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, em janeiro de 2019.
O mesmo rio que no dia 9 de janeiro deste ano, devido às fortes chuvas, transbordou e inundou a aldeia Naô Xohã. Animais morreram, casas e plantações foram destruídas, assim como a paz e os sonhos dos indígenas. Na Katurãma, também houve alagamento e tendas danificadas por granizo.
Sem apoio da Vale para realocação e auxílio financeiro, índios da aldeia Naô Xohã fecharam, no último dia 25, os trilhos ferroviários na região conhecida como Feixo do Funil, a poucos metros de onde moravam, para impedir o transporte de minério. O protesto durou três dias, até que a Justiça Estadual determinou a desocupação imediata.
Comunidade sobrevive de doações
A reportagem de O TEMPO esteve no local no último dia de manifesto, onde 136 índios, inclusive grávidas, idosos e crianças, montaram acampamento com lonas. Eles sobreviviam de doações e suportavam ainda uma incessante sirene automática que avisava sobre a aproximação do trem, que, na verdade, já estava parado no bloqueio.
A índia Tanara, 39, fez parte do protesto e pontuou que a aldeia estava inabitável por conta da presença de metais pesados. “Eu pisei na lama e fiquei com os pés feridos. Perdi minhas coisas, minha filha também. Perdi meus sonhos, minha alegria, minha cultura e o saber das crianças. Como vai ser amanhã e depois? Como elas vão aprender a cultura indígena?”, questiona.
A índia Tatiana, 40, carregava nos braços a filha mais nova, de 1 ano de 3 meses. No local, outros três filhos pediam continuamente que eles retornassem para a aldeia. “Minha filha mais velha disse que queria ir pra casa, mas logo em seguida ela me perguntou onde seria a casa dela. Perdi todos meus animais e minha plantação. Eu tinha pato, cachorro, vaca, galinha e plantava mandioca. Muitas pessoas estão com diabetes e outros doentes porque estão comendo comida industrializada que não eram acostumados”, lamenta.
O cacique Arakuã diz que, até o momento, os indígenas receberam ajuda apenas da Prefeitura de São Joaquim de Bicas, além do apoio judicial do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União (DPU).
“Não temos para onde ir. Fomos para a Escola Municipal de São Joaquim de Bicas, tivemos prazo até o dia 24 (de janeiro) para ficarmos lá, porque as aulas iriam começar. Viemos para a linha do trem para dar um recado para a Vale, porque ela cometeu um crime contra o nosso povo, a nossa crença”, explica o líder da comunidade, que voltou para a aldeia após ordem judicial, mesmo com o risco de contaminação.
Cultura indígena é patrimônio
O antropólogo italiano Oscar Torreta afirma que a ameaça da cultura indígena não ser passada para outras gerações preocupa. “Há uma emergência. Eles precisam sobreviver. A tragédia da Vale contribuiu para endurecer a vida desses índios. Eles fazem parte do patrimônio mais importante do Brasil”, pontuou.
“A cultura indígena é um patrimônio. Eles tem uma cultura ecológica muito atual. O respeito à natureza faz parte desses grupos. Então preservar esse conhecimento, cultivar essa atenção é importante", pontua Oscar Torreta
“Os nosso guerreiros estão adoecidos”
A lama que poluiu o rio Paraopeba em 25 de janeiro de 2019, com o rompimento da barragem I da mina Córrego do Feijão, da Vale, está ameaçando a propagação da cultura dos povos indígenas. Segundo a cacique Agohó da aldeia Katurãma, os homens estão adoecendo por conta da frustração de não poderem mais pescar.
“Os nossos guerreiros estão adoecidos. Eles se sentem incapazes. Eles que caçam, iam buscar o peixe e hoje não podem fazer isso mais. A gente vê eles de cabeça baixa. As crianças estão menos interessadas na cultura e eu, como cacica, tenho medo que a nossa cultura se perca por um crime que não fomos nós que cometemos”, lamenta a liderança.
A aldeia é formada por 89 adultos e 34 crianças. Enquanto se refrescam com água de mangueira, em coro, os menores respondem que a maior saudade é de tomar banho no rio. O Paraopeba também era o local onde as crianças eram batizadas, ritual que também não é mais realizado.
“O rio era tudo para nós. Era lá que a gente fazia nossos batizados, lual à beira do rio. Hoje, com o desastre da Vale, não podemos mais fazer isso. A gente levava as crianças para purificar o corpo, e hoje não pode. Me sinto triste porque meu filho me chama para tomar banho no rio e fico com o coração partido. Na época, ele tinha 2 anos e, agora, não posso mais levá-lo”, desabafa o índio Aricuri, 27.
MPF e DPU pedem na Justiça que a Vale realoque os índios e pague auxílio
O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) entraram na Justiça Federal, no último dia 24, com o pedido para que a mineradora Vale proceda com a realocação dos índios Pataxó e Pataxó hã-hã-hãe da aldeia Naô Xohã e pague um auxílio financeiro aos atingidos após inundação da aldeia no início de janeiro e contaminação por metais pesados que estavam no fundo do rio Paraopeba. Segundo o procurador da República Thales Coelho, que atua no caso pelo MPF, antes do meio judicial, os órgão conversaram com a Vale para tentar um acordo, mas não obtiveram sucesso.
“Nós contatamos a Vale para tentar acelerar a realocação. Inicialmente a gente tentou uma solução negociável, mas não foi possível. A Vale alegava que não teria qualquer responsabilidade no fato. A gente tentou a negociação até o dia 21. Na segunda-feira (dia 24), entramos com ação na Justiça Federal, com caráter de urgência”, explicou o procurador.
Apesar do pedido, o representante do MPF afirma que a Justiça Federal entendeu que seria necessário conceder um prazo de dez dias para que a mineradora se pronunciasse sobre o caso.
"A gente achou o prazo excessivo diante da urgência da situação. Então, nós vamos peticionar nos autos pedindo que a ação seja logo julgada e seguimos acompanhando. Também emitimos recomendação para que fosse garantida a integridade física dos indígenas e estamos em contato com os órgãos assistenciais do Estado. Tentamos um local para que eles permaneçam temporariamente”, afirmou o procurador.
Decisão
Na última quinta, após três dias de protesto, os índios que ocupavam a linha de trem, na região conhecida como Feixo do Funil, em São Joaquim de Bicas, tiveram que deixar a área por determinação da juíza da 2ª Vara Cível, da Infância e da Juventude e Juizado Especial Criminal da Comarca de Igarapé, Tatiana Tartulia Mota Franco.
De acordo com o cacique Arakuã, após a decisão, os indígenas não tiveram outra opção, a não ser voltarem para a aldeia, mesmo com rastros de lama e metais pesados no local. “Nós tivemos que retornar para a comunidade, foi nossa única opção. Mesmo com ela contaminada. Agora é pegar na mão de Deus e aguardar uma nova decisão do juiz. Já judicializamos e estamos aguardando”, explicou a liderança da comunidade.
Empresa diz que segue TAP-E
A mineradora Vale afirma que, desde o rompimento da barragem B1, em Brumadinho, em janeiro de 2019, tem mantido diálogo com os indígenas Pataxó e Pataxó hã-hã-hãe, com o Ministério Público Federal (MPF), com a Defensoria Pública da União (DPU) e com a Fundação Nacional do Índio (Funai), para desenvolver um plano de reparação. A ideia, segundo a empresa, é de restabelecer de forma sustentável as condições de vida anteriores dos membros das aldeias Naô Xohã e Katurãma.
Em nota, a mineradora afirmou que, em abril de 2019, firmou com os indígenas, a Funai e as instituições de Justiça um Termo de Ajuste Preliminar – Emergencial (TAP-E), que incluiu todos os 222 indígenas impactados pelo rompimento.
“Em aditivo ao TAP-E, o grupo optou pela substituição do auxílio emergencial, que seria pago mensalmente até dezembro de 2023, pelo repasse único do programa de suporte econômico complementar, pago em 2 de setembro de 2021. Aproximadamente 15% do valor total, que foi depositado em juízo pela Vale a título de reserva para a administração do então programa, será liberado em favor das comunidades indígenas, conforme determinado pela 13ª Vara Federal/SJMG”, disse a empresa.
Além disso, a Vale informou que presta assistência de nos serviços de atenção primária à saúde, também até dezembro de 2023. “Outras medidas de reparação serão definidas a partir da conclusão do diagnóstico socioeconômico”, declarou. A mineradora disse ainda que apresentou, na semana passada, propostas de assistência humanitária, tendo em vista os impactos da chuva.
Mini Entrevista
Thales Coelho - Procurador da República
“É uma situação de risco à vida”
A decisão da Justiça Estadual que determinou a saída dos índios dos trilhos, em São Joaquim de Bicas, não deveria ter vindo da Justiça Federal?
A ação foi proposta na Justiça Estadual, de forma equivocada. O juiz que recebeu essa ação logo percebeu o erro e mandou para a Justiça Federal. A empresa que promoveu a ação, a MRS Logística, recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que determinou que o caso fosse apreciado na própria Justiça Estadual.
O MPF vai propor alguma ação nesse caso?
Isso vai ser objeto de impugnação pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União em momento oportuno. A gente, agora, está dando prioridade para conseguir pela Justiça Federal que a Vale providencie a realocação dos indígenas, que é o que vai dar uma solução mais definitiva para os Pataxós e Pataxós hã-hã-hãe.
A volta deles para a aldeia aumenta a urgência diante do risco de contaminação por metais pesados?
Exatamente. É uma situação de risco à vida. Eles voltaram por completa e absoluta falta de opção, por não terem onde ir. A Prefeitura de São Joaquim de Bicas até ofereceu a sede do CRAS para receber as crianças, mulheres grávidas e idosos, porque não comportaria todo mundo, são 136 pessoas, mas a comunidade optou por permanecer junta.
Mais respostas
Governo.
O Estado informou que está em diálogo constante com o município, a Funai e a Vale para tratar das medidas emergenciais a serem adotadas. “O governo de Minas também está alinhando com o governo federal a viabilização de ajuda humanitária e segurança alimentar aos indígenas da aldeia Naô Xohã”, disse em nota.
Outros.
A reportagem procurou ainda a Funai e a Prefeitura de São Joaquim de Bicas, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Saúde em alerta
De acordo com o advogado Pedro Henrique Moreira, que presta assessoria técnica para os índios, na última quinta-feira, 16 índios da aldeia Naô Xohan testaram positivo para a Covid-19.
A assistência às mulheres grávidas também foi cortada pela Vale em outubro do ano passado. “Eles tem seis grávidas na comunidade, sendo duas de alto risco”, disse.
Moreira explica que na aldeia Katurãma os índios também vivem sobre lonas, o que os deixam vulneráveis a doenças em épocas de chuva.