A experiência com o sagrado, para algumas pessoas, é carregada de uma liturgia rígida, distanciada, formal. Para outras tantas, em uma expressão de fé mais popular, carrega intimidade – tanta que, para ficar em um dos nomes celebrados nos festejos juninos, há até quem, de tão perto, coloque um santo de castigo. Uma dualidade que encontra paralelo na relação de artistas e ouvintes com a música – ora encarada com um quê solene, quase como uma dádiva divina, ora despojada dessa aura e ganha um verniz mais singelo e popular.

Todo esse preâmbulo serve para situar como a segunda edição do Jardim Sonoro, primeiro festival com curadoria própria do Inhotim, representou uma experiência musical que se localiza justamente entre essas duas formas de manifestação da fé; ou seja, na experiência de um sagrado íntimo, que carrega simultaneamente reverência e sutileza, exigindo sua oferenda – a atenção e a escuta ativa – para então entregar algo maior.

Tudo isso, porém, em uma atmosfera descontraída, com artistas e público dispostos no mesmo plano, reunidos em roda, em um ambiente despojado do formalismo de um anfiteatro ou do distanciamento dos grandes shows em estádios.

Aliás, mais que a estrutura física – o palco baixo, a plateia sentada no gramado de uma clareira –, foram as apresentações que, talvez não intencionalmente, sustentaram essa proposta, fosse na forma ou no conteúdo.

Na abertura, a cantora e ativista indígena Djuena Tikuna já dava o tom dessa proposta musical-sacramental ao levar ao palco Desert Park o espetáculo Torü Wiyaegü – expressão que, em língua Tikuna, pode ser entendida como “voz do povo Tikuna”. A performance entrelaça cantos tradicionais do Alto Solimões a elementos poéticos, políticos e rituais, todos apresentados em seu idioma nativo.

Já neste sábado, abrindo os trabalhos no palco montado nas proximidades da obra Desert Park (2010), da artista Dominique Gonzalez-Foerster, Luiza Brina trouxe Prece, seu mais recente trabalho, em que as músicas são tratadas – e nomeadas – como orações. Como explicou a própria artista, foi a primeira vez que esse projeto, originalmente gravado com uma orquestra composta apenas por mulheres, foi adaptado para um formato mais íntimo e reduzido – em dimensão, não em qualidade. 

Na sequência, no palco montado nas adjacências da obra Piscina (2009), de Jorge Macchi, Mônica Salmaso – uma das mais respeitadas intérpretes da música brasileira – agraciou o público com um espetáculo inédito, em tributo ao legado de Tom Jobim. O compositor, um dos responsáveis por projetar a bossa nova no cenário internacional, terá seu centenário celebrado em 2027. Pode-se dizer, portanto, que os presentes acompanharam uma das primeiras grandes homenagens à sua obra, das muitas que virão nos próximos anos.

Na apresentação, acompanhada por Teco Cardoso nos sopros e João Camarero nas cordas, Mônica encantou, alternando voz e percussão. Experiente, ela se dirigia ao público como quem conversava com amigos. Fazia introduções, orientava o olhar, convidava à escuta. Quando partia para a interpretação, emprestava suavidade às palavras e permitia que cada verso pesasse conforme seu conteúdo, sem exageros e extravagâncias vocais.

Encerrando o sábado, a cantora e compositora norte-americana Cécile McLorin Salvant impressionou com uma apresentação vigorosa, marcada por ampla modulação vocal e certa teatralidade. Não por acaso, aliás, ela já foi comparada a grandes nomes do jazz, como Nina Simone. O portal London Jazz News, por exemplo, escreveu que ao ouvir o álbum For One to Love (2015), era impossível não se lembrar de Simone e Betty Carter. Já a emissora pública norte-americana NPR, em 2018, exaltou a maneira com que Cécile recria, com sua assinatura própria, canções clássicas do jazz. Entre os exemplos citados está “Nobody”, composição de 1906 que ganhou nova vida na voz de Nina Simone em 1960 e, agora, soava novamente atual na interpretação de Cécile.

No Inhotim, acompanhada pelo pianista Glenn Zaleski, a artista surpreendeu ao incluir no repertório, como penúltima faixa do show, a canção “Retrato em Branco e Preto”, de Tom Jobim com letra de Chico Buarque – composição eternizada no disco Elis & Tom (1974), e que também havia sido celebrada por Mônica Salmaso em seu espetáculo anterior.

No domingo, último dia do festival, essa comunhão entre o cósmico e o musical deve seguir como fio condutor do Jardim Sonoro. Sobem ao palco a baiana Josyara, a sul-mato-grossense Tetê Espíndola, a multiartista mineira Brisa Flow e o grupo baiano Ilê Aiyê – cujo nome vem do iorubá e pode ser traduzido como “casa da vida” ou “terra dos vivos”, e cuja história se conecta perfeitamente à atmosfera e proposta desta segunda edição do evento. Afinal, fundado em 1974 no bairro do Curuzu, em Salvador, o Ilê nasceu no seio do terreiro Ilê Axé Jitolu, ligado ao candomblé da nação Ketu e, desde o início, contou com o apoio espiritual de Mãe Hilda Jitolu, referência religiosa e cultural que é considerada uma espécie de matriarca do bloco.