Literatura

Autora mineira Marcela Dantés lança romance inspirado em episódio da vida real

Caso da espanhola cujo corpo foi encontrado anos depois de sua morte, mumificado, sem que ninguém desse falta, foi o ponto de partida

Por Patrícia Cassese
Publicado em 21 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Assim que terminou de ler a reportagem, Marcela Dantés foi tomada por uma aflição imensa: “Eu me lembro de ficar olhando a notícia e pensando quais foram os caminhos e escolhas que colocaram aquela mulher em um lugar tão solitário e cruel”.  Publicada no periódico “El País” em julho de 2017, a matéria à qual ela se refere narrava um episódio de fato desnorteador, ocorrido no município de Culleredo, nos arredores de La Coruña, na Espanha.  

Dias antes, o corpo de uma mulher, Maria del Rosario Otero Vieites, havia sido encontrado mumificado, no chão de seu apartamento, que, vale dizer, teve que ser arrombado pela Guarda Civil. Pelo estado do corpo, a morte teria ocorrido quatro, cinco anos antes. O dado inquietante é que ninguém deu falta. Rosario não tinha emprego fixo, tampouco era casada ou tinha filhos. Sua mãe, com quem dividia o apartamento, morrera um ano antes. A luz e a água haviam sido cortadas por falta de pagamento, mas a imobiliária não se atentou para o fato. Da mesma forma, ninguém se deu conta da correspondência acumulada. 

“Esse apagamento absoluto de uma pessoa me tocou bastante”, reitera Marcela. “Em condições normais, somos tão sociais, tão dependentes do convívio com outras pessoas que uma perda é algo que nos impacta muito e reverbera na família, nos amigos, vizinhos, colegas de trabalho. Enfim, me parecia impensável que isso pudesse realmente acontecer e, por isso, me deparar com a notícia, com o fato real (que não é isolado, depois pesquisei e descobri que não é incomum), foi bem duro – mesmo que tenha sido narrado de forma tão sensível e respeitosa pela Sílvia”, diz, referindo-se à autora da matéria, a jornalista Silvia R. Pontevedra.  

Foi durante uma das várias vezes que seus pensamentos a levaram de volta à história dessa mulher que Marcela resolveu modificá-la. Nascia, ali, o embrião de “Nem Sinal de Asas” (Editora Patuá), que, vale dizer, marca a estreia da mineira no gênero romance – em 2016, já havia lançado a coletânea de contos “Sobre Pessoas Normais”, que foi semifinalista do prêmio Oceanos. “É uma obra de ficção, ainda que o ponto de partida tenha sido um fato real”, esclarece. “A personagem principal, Anja Santiago, foi completamente construída, ela só existe no romance. A notícia foi a inspiração para a trama, para o argumento principal do romance: uma mulher morre sozinha em seu apartamento, e seu corpo é encontrado cinco anos depois. Mas quem é essa mulher, como ela chegou ali, quais as razões da sua solidão, a causa da sua morte, quem ela conhece, com quem ela deixou de falar, tudo isso é ficção, é construção”, frisa a autora, ainda que reconhecendo que, sim, de certa maneira, a empreitada é uma homenagem a Rosário, mesmo que em nenhum momento exista a intenção de se criar um vínculo com a realidade, com o fato acontecido. “Nesse sentido, a principal escolha narrativa foi a liberdade do ficcionista, e dentro do livro tudo tem espaço, tudo se torna possível”, explica.  

De modo orgânico, Marcela acabou firmando uma “parceria” com Silvia Pontevedra, a autora da matéria. Em março de 2018, ou seja, cerca de dez meses depois de ler a reportagem, a mineira foi atrás do e-mail da repórter espanhola. “Queria simplesmente contar que aquele texto tão bonito tinha me inspirado a escrever um romance. Àquela altura, eu já tinha mais ou menos metade da primeira versão. Contei a ela que tinha ficado tocada e perguntei se podia me contar um pouco mais da história, alguns detalhes práticos, fatos presenciados, respostas, informações que não estavam na matéria, mas que me pareciam essenciais para justificar tudo o que aconteceu. E ela foi incrível: compartilhou comigo algumas imagens, coisas de que ela se lembrava e, como se não bastasse, voltou à cidade, conversou com vizinhos, com a Guarda Civil... Enfim, fez um novo levantamento de todas as informações que encontrou”, conta.  

A escritora diz que esse auxílio, além de ajudá-la a desembolar alguns pontos da narrativa - “Às vezes, eu ficava estagnada, pensando em como algumas coisas poderiam ter chegado ao ponto que chegaram, o que fizeram com os pertences dela, como ninguém viu a caixa de correio cheia, por exemplo, perguntas práticas que não me faziam sentido” –, a deixou particularmente emocionada. “A gente pensando e falando de solidão, de dor, sofrimento, e alguém do outro lado do mundo, que nunca me viu, doando horas do seu tempo para me ajudar com meu romance. Foi uma troca muito rica e muito valiosa”, exalta.  

Com o livro pronto, Marcela diz que, como uma obra de literatura de ficção, espera que ela alcance e toque os leitores de alguma maneira, “levando reflexões e aflorando sentimentos”. “Acho importante dizer que não é uma obra que levanta bandeiras, que convida à ação, ainda que trate de assuntos sensíveis e urgentes, como racismo, abuso e solidão. Faz pensar, promove o diálogo, claro, mas, pra mim, o livro deve servir para despertar sensações nos leitores, seja o prazer de uma boa leitura ou a possibilidade de se desligar um pouco do mundo real – algo que me parece cada vez mais importante. E a obra é também uma homenagem às pessoas que, por uma série de razões, passam por esse mundo em completa solidão”, diz.  
 
Autora inova para apresentar livro. Por conta da pandemia, Marcela Dantés e a editora optaram por um lançamento assíncrono: em vez de fazer, por exemplo, um evento ao vivo nas redes sociais, a autora está apresentando, desde o dia 6 deste mês, e até 6 de novembro, em seus perfis pessoais no Instagram e no Facebook, uma sequência de conteúdos: videoleituras, fotos, trechos do livro e leituras feitas por convidados. “O lançamento de um livro é um momento muito importante, é uma conclusão de um processo longo, algumas vezes de anos, que demandou muita energia, muito trabalho e muita troca. Eu acho que aquele encontro para o autor assinar os livros, encontrar as pessoas, conversar sobre a obra, é essencial, até meio catártico. Inclusive, pensei bastante se adiava o lançamento, mas achei que a história de Anja merecia chegar logo às pessoas e penso que ela pode ser uma boa companheira de isolamento”, reflete. 

E, assim, veio a necessidade de se pensarem estratégias que, na verdade, já têm se revelado positivas. “Alguns estão gravando trechos do primeiro capítulo para serem postado nas redes sociais. Além disso, estamos divulgando informações sobre as personagens e o enredo, possibilitando uma imersão na história – é uma forma diferente de fazer aquilo que os lançamentos tradicionais faziam: trazer o leitor para perto”, conclui. 

Confira, aqui, outros trechos do bate-papo com a autora:

Gostaria que falasse um pouco sobre o título da obra. Ele vem de um trecho do livro, que reproduzo aqui. É uma reflexão da protagonista sobre o seu nome, um traço que a incomoda desde muito jovem e que determina algumas de suas escolhas. "Ela tinha poucos anos quando as brincadeiras começaram, as pessoas que diziam que seu nome era esquisito, que seu nome era engraçado, as pessoas que riam muito quando o seu nome era dito logo em primeiro lugar na chamada da escola e, depois, quando não havia escola, no jardim do prédio quando um amigo qualquer quisesse gritar por ela sempre tão bem escondida na hora do esconde-esconde e depois e todas as vezes que ela aparecia nos desenhos infantis com asas sendo que ninguém mais tinha asas e ela também não tinha, ela já tinha olhado as costas no espelho muitas e muitas vezes e não havia nem sinal de asas, crescidas ou em broto. E um dia uma versão adolescente dessa menina escutou Ângela e achou que fosse com ela, mas depois viu que não, que Ângela era uma mulher tão bonita e sorridente, uma adulta real de cabelos vermelhos e batom vermelho e dentes bonitos e caminhava como se soubesse aonde ia (e ia pra dentro do prédio em que ela morava) e desde então, pra quem era novo em sua vida e não sabia da história estúpida das asas, ela dizia – sorridente e como se soubesse aonde ia ­ – que o seu nome era Ângela". 

O livro será lançado na Espanha? A jornalista autora da reportagem sobre o caso real teve acesso a ele? Ainda não há previsão de lançamento na Espanha, mas é um plano que eu tenho. Seria incrível!  Sim, eu compartilhei o texto com a Sílvia ainda no momento da produção - mas a versão final ela ainda não conhece. Combinei de enviar assim que tiver com o livro em mãos - para ela e para as pessoas com quem ela conversou sobre o caso da Rosário. 

Que livros-reportagens te influenciaram na sua formação? A minha formação, na verdade, foi em Publicidade e Propaganda. Mas, curiosamente, os livros-reportagens são sim, objeto do meu interesse, principalmente aqueles que são escritos com uma preocupação também com a forma: um texto fluido, envolvente, um cuidado com as palavras; Eu destaco aqui o "No Ar Rarefeito", do Jon Krakauer e a obra da Daniela Arbex, sempre tocante e muito impactante. 

Finalizou o livro em plena pandemia, confere? Depois do fecho, se enveredou por outras escritas? Sim, ajustes e revisão final foram concluídos durante a pandemia. Logo depois fui tomada por uma dificuldade imensa para produzir - nem a literatura, que costuma ser uma válvula de escape, estava dando conta das angústias e incertezas do momento e fiquei uns bons meses parada. Acho que houve uma coincidência também de momentos, finalizar um livro sempre traz uma espécie de luto, é preciso um tempo para assentar novamente a cabeça e o coração, depois de um processo que é tão intenso e visceral. Até que um dia eu acordei e comecei a postar um diário no Instagram, quem tem sido um exercício de criação importante, em uma busca pelo equilíbrio entre ficção e realidade. Aceitei alguns convites e produzi contos e mini-contos, mas ainda nenhum novo projeto de fôlego. Pretendo em breve retomar projetos que estão na gaveta, principalmente um romance em que trabalhei enquanto fiz uma residência literária em Portugal e que precisa de alguma atenção e trabalho para ser concluído. 

Por último, mas não menos importante... Pode falar da pandemia em si, que incômodos e descobertas te trouxe, o que mais te decepcionou, o que de positivo te apontou, como está se sentindo neste exato momento e quais as expectativas para o mundo pós-pandemia? A pandemia, pra mim, é uma montanha russa, e tenho me esforçado para tirar o melhor dela. Mas é claro, tem dias horríveis, de angústia, medo, cansaço e saudade, muita saudade. São muitos desafios, mas o principal pra mim é estar fisicamente longe das pessoas queridas, esse contato me alimenta e me move. O timing foi muito específico: eu tive meu primeiro filho em setembro do ano passado e a minha licença maternidade acabou em março - ou seja, eu retomaria o trabalho no exato momento em que nos trancamos todos em casa. Então eu, que já estava fora do meu registro normal, me adaptando a uma nova dinâmica, me vi ainda mais afastada de tudo e todos e isso, óbvio, veio com uma inquietação ainda maior. Com o passar do tempo a gente vai se adaptando e aprendendo a enxergar os pontos positivos, como o privilégio imenso que é acompanhar o desenvolvimento de um bebê 24 horas por dia. Mas, pensando fora da minha casa, a sensação é de pânico e dor: acordar todos os dias e ver a total incapacidade do nosso governo para lidar com esse assunto (e com todos os outros), o número de mortes que cresce assustadoramente, as mais de 150 mil vidas brasileiras perdidas, tudo isso me dói bastante e, sinceramente, não sei como vamos nos recuperar de tudo isso. 

 
Serviço 
Confira as pílulas de lançamento no perfil da autora no Instagram (@marceladantes) e no Facebook (/marceladantes). 
O livro também está em pré-venda no site da Editora Patuá (www.editorapatua.com.br) ao preço de R$ 40.

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