A cineasta Eliane Caffé não gosta de deixar pontos sem nó. É importante, para ela, encontrar esses sinais de liga e de tensão e deixá-los expostos. Ao falar sobre a luta por moradia no país, por exemplo, permite que a busca de refugiados por um lugar em que possam viver atravesse o horizonte. Linhas que se cruzam, ainda, com concentração fundiária e com as contradições das grandes cidades e que são examinadas no filme “Era o Hotel Cambridge” (2016), em exibição no programa do Cine104 em Casa nesta quinta-feira. Já em seu mais recente trabalho, “Para Onde Voam as Feiticeiras”, em que divide a direção com Beto Amaral e Carla Caffé, costura a história de um coletivo LGBT de São Paulo determinado a fazer alianças com outros corpos precarizados, como os dos indígenas e o da negritude. Mais uma vez, seu olhar busca pontos de interseção.

Para encontrar os nós do novelo, Eliane, por vezes, até perde o fio da meada, mas logo o retoma. Quando falou a O TEMPO sobre como a Covid-19 deve impactar o cinema e sobre iniciativas como o projeto Café com Diretor – programa mensal promovido online pelo CentoeQuatro que propõe um bate-papo com cineastas, do qual ela foi a primeira convidada –, buscou contextualizar que, neste momento, “estamos vivendo fora de qualquer paradigma e estamos criando um novo paradigma às pressas”. “Nessa corrida, sou atravessada por várias questões que transcendem a realidade específica de cada um de nós”, diz.

A diretora cita uma grande preocupação em relação à devastação e aos conflitos agrários na Amazônia, que se agravam em meio à pandemia, mais um elemento para que reconheça se sentir pouco preparada para “organizar a gestão da criação, da existência nesses dias”. Só então, conclui: o cinema pode ser uma janela, “arejando e trazendo luminosidade para que a gente consiga continuar pensando e respirando”.

“De que cinema estamos falando?”

Mas há ainda muitas questões mais sobre os impactos da pandemia sobre o cinema – ou melhor, os cinemas, no plural, como ela prefere. “As grandes plataformas, como a Netflix, estão lucrando muito neste momento. E, se são elas que vão financiar as próximas produções, são elas que têm as cartas de que filmes serão feitos”, pontua, avaliando que existe outro cinema muito potente, que seguirá presente, ainda que negligenciado. 

“Feito à revelia das grandes produtoras, com uso de ferramentas digitais, esse modelo sempre operou sem dinheiro e tem muito a nos ensinar. É um cinema periférico, feito por coletivos, pela negritude, pelos LGBTs, pelos movimentos de luta e que tensionam certos cânones”, observa. Um terceiro vetor são as produções autorais, mais ligadas à classe média alta do país: “É um modelo que está à míngua e que precisa escolher um lado: ou esses criadores vão vender sua força de trabalho para as gigantes, ou vão compor com esse outro segmento”.

O cenário que desenha em seguida faz lembrar o polifônico “Para Onde Voam as Feiticeiras”, selecionado para a 32ª edição do Festival de Cinema Latino‑Americano de Toulouse, na França. O longa, que a diretora classifica como um experimento, propõe uma interação direta e encenações de LGBTs nas ruas do centro de São Paulo. Prevalente em sua obra, o documentário também é demarcado pelo hibridismo entre ficção e realidade.

“São pessoas que entenderam que a luta para se manterem vivos poderia ser fortalecida se compartilhada com outras similares. O filme é a tentativa de formar alianças. Para isso, partem para a criação de intervenções urbanas no espaço público da cidade para que, de alguma forma, consigam se comunicar mostrando que a resistência negra, indígena, LGBT e de ocupação urbana dos trabalhadores sem-teto possuem algo em comum: o desejo de ficarem vivos”, resume a Eliane.

No mesmo sentido, a diretora acredita que é possível que essas diferentes forças do cinema encontrem pontos de confluência e construam alianças. Um recorte que está no DNA de seus trabalhos. No mais recente projeto em que está envolvida, a cineasta trabalha, atualmente de forma totalmente online, com o coletivo Engajamundo e com as brigadas do Movimento Sem-Terra (MST).

Meio ambiente e choque de empatia

Eliane, quando fala sobre a pandemia, também busca cruzar fios e fazer conexões que, muitas das vezes, não estão postas. “O que estamos vivendo é o sintoma de falência de um sistema baseado no culto às mercadorias, que colapsou. Um modelo de mundo que desmata, que destrói, e é por essa razão que os vírus, cada vez mais, vão migrar de espécies ameaçadas para os seres humanos”, examina. 

Em junho, com artistas, movimentos sociais e cientistas, ela participa do Fórum Popular da Natureza, buscando discutir essas e outras questões ligadas ao ambientalismo, à ciência e à arte.

A cineasta acredita que a Covid-19 deveria, por sobrevivência, conduzir a sociedade a um choque de empatia: “Está mais palpável como um trabalhador depende do outro, mesmo que em segmentos sociais diferentes. E, enquanto o sistema está à deriva, são profissionais como os garis e os entregadores que saem às ruas que mantêm alguma ordem. São normalmente essas pessoas que estão na luta por moradia e que, no olhar de quem não conhece, viram personagens policialescas que precisam ser perseguidas”, examina, completando que essas conexões precisam ficar nítidas.

Serviço:

O link e a senha para acesso ao filme é disponibilizada nas páginas oficiais do Centoequatro no Facebook, no Instagram e no site do Cine104. Para assistir, basta clicar no link e digitar a senha.