Novos modos

Festivais de cinema se reinventam e buscam manter relevância durante pandemia

Como outras mostras, Festival Finos Filmes, que segue até 5 de julho, foi repaginada para sobreviver às restrições impostas pela Covid-19; CineOP deve acontecer, virtualmente, em setembro

Por Alex Bessas
Publicado em 30 de junho de 2020 | 12:58
 
 
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Da tela de seu computador, por meio de um link, o crítico e pesquisador de cinema Denilson Lopes já havia assistido, tomado nota e preparado um roteiro com as principais questões a serem postas em relação ao filme “Lembro Mais dos Corvos” – obra de Gustavo Vinagre que naquele 2018 integrava a Mostra Aurora, seção do Festival de Tiradentes dedicada a filmes de diretores com até três longas-metragens no currículo. Depois da projeção pública, no entanto, as anotações de Lopes perderam validade: a reação do público e mesmo da equipe do filme, com destaque para a expressão de surpresa da atriz Júlia Katharine, protagonista da trama, potencializaram a narrativa e comunicaram ao crítico algo que, individualmente, não poderia experimentar.

A anedota funciona como alegoria do impasse posto aos festivais de cinema em todo o mundo, quando a pandemia da Covid-19 obriga que, ao acontecer apenas virtualmente, a experiência do público torne-se mais restrita e, de certa forma, solitária – semelhante ao que experimentou Lopes ao assistir “Lembro Mais dos Corvos” da tela de um dispositivo. Acima de tudo, as mostras são, afinal, um espaço de celebração do cinema, que possibilitam a emergência de uma imersão coletiva, reunindo realizadores, academia, imprensa, espectadores e outros diversos atores da chamada sétima arte. Assim, com a impossibilidade de uma vivência coletiva, torna-se mais difícil o acesso a uma expansão sensorial que possibilite sensações catárticas ao assistir à exibição de um filme.

Não realizá-las, no entanto, é abrir mão de um ambiente de crítica e de oxigenação dos processos cinematográficos e de um local em que se pode visualizar um horizonte de tendências e a formatação de um espírito do tempo das produções audiovisuais. Por isso, festivais têm buscado formas de se reinventarem para que consigam manter relevância, para que não se tornem apenas meros catálogos de filmes.

E a verdade é que, diante da dificuldade de alcançar uma experiência cinematográfica ampliada, prestigiados circuitos foram à lona – como o de Cannes, na França, e o de Málaga, na Espanha. Por outro lado, em resposta ao cenário que parecia desolador, surgiram iniciativas como o We Are One: A Global Film Festival, que aconteceu entre o final de maio e o início de junho e reuniu cerca de 20 grandes festivais internacionais com transmissão gratuita por meio de canais digitais. No Brasil, caminho semelhante trilharam festivais como o Varilux de Cinema Francês e o Brasília International Film Festival (BIFF), que migraram suas programações integralmente para plataformas virtuais. Também devem acontecer apenas digitalmente os mineiros CineOP, que completa 15 anos neste 2020, e CineBH.

Repaginado, o Festival de Finos Filmes é outro que chega extraordinariamente online à sua sétima edição nesta terça-feira (30), se estendendo até o dia 5 de julho. A iniciativa é apresentada, agora, como uma mostra beneficente de curtas-metragens, com debates sobre política, cultura e outros temas. Eixo central do evento neste ano, a discussão racial, sobre corpos e liberdade permeia toda a programação – que inclui a transmissão de seis debates transmitidos por meio do canal no YouTube do Museu da Imagem e do Som (MIS) e veiculação de 13 curtas-metragens disponibilizados no streaming Spcine Play. Para a abertura, os convidados são o ator Lázaro Ramos e a escritora Ana Maria Gonçalves.

“O formato online não estava previsto. Tínhamos parcerias internacionais estabelecidas, convidados internacionais dispostos a vir para o Brasil. Tudo isso se perdeu, claro. Mas, aos poucos, fomos entendendo como a nova configuração poderia ser também uma aliada para os objetivos centrais do Finos Filmes: propor debates de alcance e relevância nacionais, com temas determinantes para pensar a atualidade brasileira”, explica Felipe Poroger, criador e diretor do evento.

Ele menciona como exemplo de uma experiência bem-sucedida neste processo de adaptação o Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade que, completando 25 anos, levou para plataformas digitais parceiras, entre março e abril, cerca de 50 horas de programação em 30 títulos, entre longas-metragens, curtas e séries.

A lista completa de atrações do Finos Filmes está disponível nas redes sociais do evento (@finosfilmes no Instagram) ou em www.finosfilmes.com.br. Todas as informações estarão também nos canais do Museu da Imagem e do Som – SP (@mis_sp).

O digital veio pra ficar

Fazendo um balanço de como o atual cenário interfere na realização da mostra, Poroger vê perdas e ganhos. “O que se ganha é o alcance potencial, a possibilidade de que o evento não se restrinja a São Paulo. Tanto no que se refere ao público quanto aos convidados e convidadas – que vão se conectar de diversos lugares do país e do mundo”, considera. “O que se perde, por agora, é o calor do presencial – talvez um tanto simbólico, mas potencialmente construtivo para a discussão de ideias”, pondera.

Opinião compartilhada com a de outros realizadores e produtores, Poroger acredita que a pandemia provocou uma aceleração da digitalização de conteúdos. Examinando a possibilidade de, superada a crise sanitária, realizar a oitava edição do Finos Filmes presencialmente, ele não descarta a manutenção de um braço virtual. “O caminho do online parece irreversível, mas nunca vou deixar de acreditar na importância de experimentar a arte de maneira coletiva, física. O jeito será buscar o equilíbrio, tentando entender os benefícios de cada formato e misturar”, argumenta.

Raquel Hallak, à frente da Universo Produções, que realiza a Mostra de Tiradentes, a CineOP e a CineBH, concorda que a digitalização será um legado permanente deixado por esse período de forçada adaptação. “No futuro, teremos que conjugar os dois formatos, com programação presencial e virtual”, pontua. “Comparo com restaurantes que, no susto tiveram que se adaptar à realidade dos deliverys e que, com o passar do tempo, conquistaram um público. Se, passada a crise, esses estabelecimentos abandonarem esse trabalho, vão perder oportunidades”, diz Raquel, lembrando que, embora parte da experiência se perca, os eventos online ganham em escala, chegando a um contingente maior de pessoas.

A expectativa, adianta, é que a Mostra de Cinema de Ouro Preto, CineOP, única com foco em conservação do país, aconteça no início de setembro. Já a Mostra de Cinema de Belo Horizonte, CineBH, que tem foco em mercado, está pré-programado para outubro. Ações pontuais não são descartadas: “Se a gente tiver condições sanitárias para isso, pensamos em realizar exibições ao ar livre, como os cine drive in ou o cinema na praça”. Em janeiro de 2021, Raquel torce que seja possível realizar o Festival de Tiradentes aos moldes mais tradicionais.

Dilema antigo

O pesquisador, cineasta e crítico Vitor Medeiros lembra que é antiga a discussão sobre a possibilidade de oferta digital e presencial de filmes exibidos em mostras. Para os realizadores, reforça, a disponibilização das produções na web sempre foi uma questão.

“O argumento de muitos curadores era que, para os festivais, seria mais interessante que os filmes fossem inéditos e, assim, os links de acesso foram se tornando meio secretos, o que, em tese, valoriza a exibição”, comenta. Por outro lado, “criou-se uma barreira, dificultando que os filmes sejam vistos até mesmo por pessoas do meio audiovisual. Com isso, o realizador precisava encarar o dilema de querer que o filme passe no festival e querer que as pessoas vejam”, pondera.

A digitalização, portanto, pode vir a facilitar o acesso às obras. Algo que, de certa maneira, está no cerne do trabalho de Medeiros e da equipe da revista “Moventes”, da qual é um dos editores. “Tentamos, com as publicações virtuais, democratizar o acesso, mesmo indiretamente, às mostras. Buscamos fazer textos críticos que não sejam herméticos, que sejam acessíveis a um público maior, trazer reflexões para pessoas que não estão na academia”, expõe.

O pesquisador lamenta o cancelamento de circuitos como o de Cannes, mas situa que, neste caso, “estamos falando em grandes produções, vinculadas a grandes estrelas e que vão ter circulação global em salas ou em plataformas de streaming”, diz. No caso do cinema brasileiro, o cancelamento de festivais se revelaria um golpe ainda mais duro para toda a cadeia produtiva. “Quando pensamos nacionalmente, o problema é maior: temos muitas produções que não conseguem espaço… Existe essa luta desde sempre de como escoar os nossos filmes, principalmente em se falando de produtores independentes”, avalia.

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Medeiros concorda que o formato apenas digital vai dificultar o acesso a uma certa experiência de cinema. “São vivências diferentes, que não são equiparáveis: uma delas mais individual e, a outra, coletiva”, examina. Para ilustrar como essa questão se impõe, Medeiros recorre à história que Denilson Lopes relatou a ele e que abre esta reportagem. “Em uma exibição, centenas de pessoas vivem aquilo juntas, o que vai reverberar de forma diferente. Algo é potencializado, unindo público, crítica, realizadores e produtores…”, elabora, reconhecendo que, como realizador e crítico, a exemplo do que viveu Lopes, ele também percebeu nuances e presenciou sensações em projeções públicas que, possivelmente, não lhe atravessariam em circunstâncias mais privadas.

Mais do que simples catálogos

“Ainda são muito genéricas as soluções prontas e que estão sendo usadas como plataforma para alguns festivais”, pondera Raquel Hallak, ressaltando que sua equipe estuda há três meses formas de adaptar todo o conteúdo que seria ofertado presencialmente para os canais virtuais. Estão sendo gestadas até mesmo formas de emprestar atratividade para as cidades sede: “Queremos criar no usuário o desejo de conhecer a cidade, de projetar a cidade como um destino turístico”.

“Queremos que as pessoas se sintam em um evento, e não apenas realizando uma atividade. Não queremos ser um catálogo de filmes, plataformas assim existem aos montes. O conjunto que disponibilizamos possui um conteúdo, envolve uma temática e uma discussão. Então, toda estrutura precisa fazer sentido enquanto unidade”, defende ela.

A preocupação é compartilhada por Felipe Poroger. “O Festival Finos Filmes pretende falar de Brasil e não é possível fazer isso sem falar de racismo estrutural, em primeiro plano”, argumenta, explicando como a discussão racial ocupa eixo central no evento. Ao refletir sobre o tema, cita palavras do historiador e ativista Douglas Belchior: “A democracia que experimentamos não garantiu justiça, igualdade de oportunidades e cidadania à população negra, que conforma a maioria da população brasileira. O aumento do apoio à democracia precisa estar acompanhado da percepção de que, com racismo, ela jamais será possível”.

Espaços de encontro

Vitor Medeiros também busca refletir sobre como transportar festivais para o online sem que haja significativa perda de suas dimensões.

“As mostras permitem o confronto de ideias, questões são postas e debatidas e há um espaço de reflexão. O virtual já permite esse espaço, mas perde-se muito. Perde-se essa coisa do trivial, aquelas conversas, rodinhas que se formam… Eu faço muito isso, de ir perambulando depois das sessões e dividindo impressões. É quando você vê como aquilo reverbera no espectador”, baliza ele. 

Outro elemento central nos eventos que parece ameaçado é a possibilidade de um encontro setorial do audiovisual, “quando nos entendemos como classe e pensamos coletivamente e politicamente”, indica o cineasta. É também um momento em que redes nacionais são construídas. “Em Tiradentes, por exemplo, conheci pessoas com as quais mantenho contato desde 2015, pessoas com quem fiz parcerias ao longo desses cinco anos”, informa. 

Cinema como experiência

Em um artigo em que reflete sobre as implicações do cancelamento da 73ª edição do Festival de Cannes, Manohla Dargis, crítico do The New York Times, aponta que a experiência das sessões em si deveria mais vezes permear os textos de críticas cinematográficas.

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Em diálogo com o também crítico A.O. Scott e com Kyle Buchanan, colunista de premiações do jornal norte-americano, Dargis escreve: “Embora, como vocês dois, eu ganhe a vida escrevendo sobre cinema, não escrevo o bastante sobre a experiência de ver filmes nas salas de cinema. Mas deveríamos fazer isso, porque é crucial para a nossa forma de ver e compreender os filmes, e certamente para a maneira como eles nos afetam”.

Entendimento semelhante é sustentado por Vitor Medeiros. “A partir do impedimento, a partir de uma saudade, de gritar no cinema, de ficar no escurinho, surge uma emergência de falar dessa experiência sensorial, de como o cinema se dá como vivência coletiva”, assinala. “O encontro físico permite uma repercussão maior das obras, uma repercussão mais densa. Já existiam críticos falando de obras virtualmente antes da pandemia. Mas, claro, é algo que fica nesse lugar de sua experiência individual”, conclui.

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