Chapéu, um longo casaco, luvas e uma máscara que fazia lembrar o bico de um pássaro: a indumentária usada por profissionais de saúde durante a peste bubônica, considerada a mais devastadora pandemia na história da humanidade, é, para o imaginário popular, uma das fundamentais representações daquele período. Agora, enquanto o mundo busca formas de superar a emergência de saúde provocada pela Covid-19, outra vez as máscaras faciais, mais práticas e menos assustadoras do que aquelas usadas no século XVII, tornaram-se um dos principais símbolos e um lembrete diário da existência do novo coronavírus.
Foi enquanto confeccionava o cada vez mais presente equipamento de proteção que Caroline Kurowsky, 33, decidiu ressiginificar o objeto, fazendo dele um suporte para a expressão artística: a profissional da moda enviou para artistas plásticos uma “máscara em branco” – expressão que passou a nomear a iniciativa – para que fossem feitas intervenções criativas, lançando um olhar renovado sobre o apetrecho.
O projeto é mais um no hall de ações que buscam incentivar, catalogar e projetar trabalhos artísticos que dizem sobre o atual momento histórico e que são reveladores de como as restritivas circunstâncias impostas pela pandemia afetam o fazer criativo. A Covid-19, afinal, causou alterações profundas nas dinâmicas da vida em sociedade, acelerou tendências, estabeleceu novos hábitos e protocolos, provocou respostas biológicas e se infiltrou até mesmo na intimidade dos sonhos ao adormecer. Vicissitudes que também afetaram a gênese criativa.
Não é à revelia de fatores externos, afinal, que se dá o processo de criação – que é perpassado, por exemplo, pelas acomodações de afetos e de percepções, pelas alterações na atmosfera social e no cotidiano, como explica Guilherme Massara, psicanalista e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Qualquer modalidade de criação será impactada, seja artística, científica e até laboral, pois a criatividade não é tão espontânea e está ligada a processos psicológicos, sociais, temporais e espaciais”, examina o estudioso.
Portanto, o conjunto de transformações intrínsecas ao atual cenário e a reacomodação da vida ordinária, prossegue Massara, podem resultar, para uns, em um ócio improdutivo e angustiado e, para outros, podem deflagrar uma atividade produtiva mais intensa, que talvez estivesse mais limitada por uma série de razões – como a vivência do espaço doméstico como lugar de trânsito. “Antes, havia uma naturalização da casa como lugar de passagem, em que estamos para dormir e comer, sendo que o ir e o estar no trabalho sequestravam a maior parte do tempo, e as atividades de lazer também costumavam ser externas. Logo, a atividade criativa em um período de recolhimento passa também por um processo de ressignificação, em que nos reapropriamos das relações do tempo e do espaço”, analisa.
Ao mesmo tempo, “o que estamos vendo, vivendo e lendo tem levado a muitos relatos de um empobrecimento da capacidade criativa, seja pelas mudanças de hábitos, angústia e até perda de renda. Junta-se a isso um estresse pela política”, sentencia.
Essa nova relação com o mundo foi essencial para que a cantora e compositora Adriana Calcanhotto criasse o álbum “SÓ”, cuja composição, produção e lançamento ocorreram justamente no período em que vigoraram as medidas de restrição de circulação no Brasil e em Portugal. Professora na Universidade de Coimbra, a artista reconhece que o novo trabalho talvez não existisse se ela tivesse mantido o cronograma a que estava habituada.
“‘SÓ’ não nasceu como álbum, eu não pensava nisso, mas eu acordava com uma disposição de agir, de fazer alguma coisa. Todo dia eu acordava e fazia uma canção nova. Foi acontecendo, fui vendo que era uma safra e que todas as músicas tinham o mesmo pano de fundo, que gira em torno da pandemia, essa insegurança quanto ao futuro, à quantidade de mortes”, situa.
Adriana lembra que se dispôs a acordar todos os dias e fazer uma música. “A minha disposição primeiro foi de um exercício de composição, muito porque nessa época do ano, de março a maio, eu estaria dando meu curso de composição. Percebi que tem um certo condicionamento nessa época do ano para mim, de pensar na feitura das canções, na métrica, no acabamento, em prosódia”, completa.
Um olhar para a própria intimidade
Em quarentena, a multiartista Efe Godoy se percebeu reatribuindo significados aos elementos do cotidiano, que sempre estiveram a seu alcance. Se essa perspectiva intimista já era traço marcante de seus trabalhos, há uma acentuação estilística neste momento histórico quando objetos seus – como plantas ou miniaturas em plástico da reprodução de dinossauros – se insurgem em desenhos ou em vídeos.
Da rotina enclausurada, as reproduções em telas são, por vezes, acompanhadas de palavras alento – “expressões que abraçam” – e, nos clipes, ganham narrativas próprias. Assim, partindo de itens que estão na intimidade doméstica e com os quais dialoga, sua criação ganha – a partir da reacomodação de afetos, da busca por algum conforto – um viés universal e reverbera nas redes sociais.
“Quero trazer respiro mesmo, para mim e quando jogo nas plataformas para os outros”, reconhece Efe, que, com trânsito pela música, pintura, desenho e videoarte, vem produzindo diuturnamente. “O que mais me atravessa na criação é pensar que são páginas de um diário: todos os dias, tento trazer uma nova imagem para esse mundo, que às vezes vem com uma palavra, uma frase e, de repente, um desenho vira uma continuidade, uma família”, observa, confirmando que “as coisas ao meu redor não me escapam e vão alimentado meu dia a dia”.
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A extensa produção é exposta nas redes sociais, sendo o Instagram uma das principais ferramentas. Mais recentemente, experimentações vêm sendo feitas também no TikTok e no YouTube. “Passo até 10 horas em um dia produzindo vídeos e respondendo pessoas no celular, algo que tem me assustado”, reconhece.
Efe atribui ao projeto Máscara em Branco importância nesse processo. Mas, na verdade, a artista, que mantém um ateliê em sua casa, no bairro Santa Tereza, na região Leste de Belo Horizonte, já vinha de uma trajetória de ressignificar os elementos com os quais convive: em março de 2019, por exemplo, se instalou na galeria Celma de Albuquerque, onde expôs trabalhos da mostra Estranho particular.
Angústia
Mas nem todos experimentam o desencadeamento de um furor criativo como os aqui descritos por Adriana Calcanhotto e Efe Godoy.
Alguns dos mais de 50 artistas que participaram do Máscara em Branco, por exemplo, externaram alguma dificuldade em propor uma ressignificação para o principal símbolo de um momento tão delicado. “Dou prazo de uma semana para que as intervenções sejam feitas, mas ninguém consegue cumprir muito bem”, informa Caroline Kurowsky, lembrando que, depois de prontas, as máscaras vão a leilão – tudo, claro, é feito virtualmente. A idealizadora do projeto acredita que a ação tem ocupado até mesmo um lugar terapêutico.
Algo assim foi vivenciado pelo designer gráfico e cineasta Ramon Navarro. A convite da antropóloga Débora Diniz, que precisou deixar o Brasil em 2018, quando sofreu uma série de ameaças após participar de um debate pelo direito ao aborto até a 12ª semana de gestação no Supremo Tribunal Federal (STF), o artista começou a produzir conteúdo para alimentar uma conta no Instagram que, neste momento, é dedicada a prestar homenagens às vítimas da Covid-19.
“Dessa inquietação da Débora veio a proposta de fazer o Relicário (@reliquia.rum) para que as mortes fossem representadas não apenas como números”, explica. Ao se dedicar à memória das vítimas da doença, Navarro enfrenta suas próprias angústias. "O que está me salvando é esse projeto. Eu voltei a morar em Belo Horizonte para estar perto da minha família, mas, por conta do coronavírus, estou trancado em meu apartamento e não vejo meus familiares desde março”, diz, complementando que a pandemia furtou dele também os passeios pela cidade, que funcionavam para arejar seus pensamentos e que eram objeto de inspiração importante no seu processo de criação.
O designer precisou revisar toda a dinâmica criativa, algo especialmente desafiante em um momento em que se sentia angustiado. “Eu não tinha consciência de que podia fazer isso. Precisei buscar algo íntimo para representar essas mulheres mortas pela epidemia”, comenta. Neste ínterim, Navarro redescobriu uma atividade que, no final da década de 80, lhe trazia grande satisfação pessoal, mas para a qual pouco havia se dedicado desde então: as colagens.
É a partir de imagens recortadas de mulheres do século passado que ele constrói as homenagens regularmente postadas nas redes. “Digo ali de um recorte da vida dessas pessoas, de recorte deste momento… Talvez por isso, esse método tenha vindo à tona”, elabora.
Limitações e recriações
“Se a gente parar para pensar, a arte é também sobre como superar limitações. Cria-se com os objetos que se têm ao alcance. Veja: a arte urbana, por exemplo, prescinde de um estúdio, que seria inacessível para muitos de seus expoentes. O que acontece agora é que, de alguma maneira, passamos a conviver de forma quase generalizada com diversas limitações”, observa o psicanalista Guilherme Massara, lembrando, mais uma vez, que cada um reage de uma maneira ao fenômeno e que, em razão da desigualdade socioeconômica, é sempre importante lembrar que, “embora sob a mesma tempestade, cada um está um barco diferente”.
“Para algumas pessoas, a impossibilidade do palco, do estúdio, do encontro ou de alguma plataforma com que estivesse habituado a trabalhar causa um efeito castrador, para usar uma expressão da psicanálise. Isto é, transmite a sensação de privação das condições para a criação, o que leva à inibição criativa”, situa Massara. Mas, a partir do momento em que se compreende até onde vai essa limitação, é possível criar novos suportes. Neste caso, o trabalho criativo seria acentuado: passaria pela reinvenção das plataformas para só depois acomodar a expressão da criatividade.
Exemplo dessa dinâmica está no trabalho do fotógrafo Estevão Andrade, um dos artistas selecionados para a edição virtual do projeto Verbo:Gentileza, uma plataforma de ações individuais e coletivas que, neste ano, pôs em foco trabalhos artísticos que surgiram durante o período de quarentena. “Ele vai dirigindo as pessoas, da casa dele, pelo que elas, em suas casas, transmitem do celular delas. Vai orientando, pede que coloque o celular de uma determinada maneira e vai fotografando com o equipamento dele do outro lado. Isso se torna uma nova forma de interação em que o clique final não é o principal, o processo todo é muito especial”, estabelece Patrícia Tavares, idealizadora do projeto.
Um dos diretores do média-metragem “Éramos em Bando”, experimento híbrido entre cinema e teatro que faz um tratado de como o Grupo Galpão se adaptou diante das adversidades da emergência de saúde, o dramaturgo Vinícius Souza concorda que a Covid-19 provoca mudanças na gênese da criação artística.
“Naturalmente, no contexto de isolamento e de completo caos nos âmbitos social, político e econômico, somos levados a repensar atitudes que antes eram banais, como o valor dos encontros em si”, analisa, pontuando que essa mudança de perspectiva em relação a questões do cotidiano reverbera em um novo olhar para forma a arte. “O que estamos descobrindo são novas mídias, novas formas de fazer, que, em um segundo momento, podem enriquecer o teatro propriamente dito – como já aconteceu, por exemplo, com o cinema”, sustenta.
Uma derivação da ainda inédita 25ª montagem da companhia, “Quer Ver Escuta”, que seria apresentada pela primeira vez no dia 3 de abril, no Festival de Teatro de Curitiba – evento que não pôde acontecer por conta das necessárias medidas de enfrentamento à doença viral –, o projeto audiovisual da companhia é, em si, reflexo de um esforço criativo para a manutenção do fazer teatral e é também a crônica de um mundo marcado pela estética das videochamadas, que enclausuram a intimidade e demarcam como as relações humanas foram reviradas.
Ressignificação
Reatribuir significados a signos associados à pandemia, em uma subversão de sentidos, é traço comum a diversas expressões artísticas que dizem deste período histórico. Algo presente nos trabalhos propostos pelo projeto Máscara em Branco, que ressignificam os equipamentos de proteção facial, e também no filme “Éramos em Bando”, que transformar as janelas de uma série de videoconferências em espaço cênico. Também um esforço da fotógrafa e videomaker Beth Freitas e da diretora e atriz Carolina Correa, do Coletivo Refúgio, que buscam desconstruir a ideia de distanciamento social ao projetar cenas de uma festiva aglomeração carnavalesca no corpo de uma modelo. A obra foi uma das selecionadas para o lançamento da galeria virtual #ArteSalva, da iniciativa Verbo:Gentileza.
Uma outra tônica dos processos de criação está relacionada a uma mudança de perspectiva sobre acontecimentos antes triviais e que agora ganham uma outra conotação, como um abraço ou a multidão – elemento que também está presente nas obras de Beth e Carolina. “Hoje, o registro da plateia de um show, de foliões no Carnaval ou a reprodução de uma mesa de bar poderiam afetar as pessoas de uma maneira muito especial, dado que o cotidiano ganhou uma outra dimensão e as coisas, que eram antes quase banais, agora gozam de um aspecto quase do sublime – no sentido de estarem inacessíveis”, avalia o psicanalista Guilherme Massara.
O recurso pode ser observado na mais recente publicação do poeta e cronista Fabrício Carpinejar, “Colo, por favor” (ed. Planeta do Brasil). No livro, escrito e lançado no período em que o autor já estava em quarentena, ele anota, logo nas primeiras páginas: “Nunca as varandas foram tão frequentadas. Com o resguardo diante da pandemia, elas se tornaram uma espécie de calçada da família. As pessoas viraram namoradeiras de pedra em seus corrimãos”.
É neste contexto que o gaúcho requalifica o espaço, passando a atribuir um outro valor ao lugar. “Esse livro é como se fosse a minha sacada nesses primeiros meses de confinamento, é o ponto de vista a partir do qual observo essa transformação radical de nossas vidas”, diz.
Obviamente, nem todos se sentem predispostos à criação neste momento. O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto, por exemplo, sustenta que a reclusão forçada não oferece comodidade intelectual para o exercício criativo.
Segundo autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Neustadt, o romancista disse, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” não crer que este seja o melhor ambiente para a criação: “Primeiro, porque (a reclusão) é forçada. Depois, porque não posso esquecer que, apesar de tudo, vivo uma quarentena de luxo. Não é possível pensar que, para a maioria dos moçambicanos, esse confinamento tem implicações de sobrevivência muito graves. O sofrimento dessa gente não pode ficar fora das nossas casas por muito que nos fechemos dentro de quatro paredes”.