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A ialorixá do Brasil

Mãe-de-santo mais célebre do país, Menininha do Gantois ganha biografia 21 anos após sua morte.

Por JULIA GUIMARÃES/ ESPECIAL PARA O TEMPO
Publicado em 28 de fevereiro de 2007 | 00:01
 
 
 
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"Na Bahia, Menininha do Gantois está acima de toda e qualquer divergência de ordem política, econômica e religiosa. É a ialorixá de todo o povo da Bahia, sua mão se estende protetora sobre a cidade. Não se trata nem de misticismo, nem de folclore e, sim, de uma realidade do mistério baiano".

Com essas palavras, o escritor Jorge Amado bem sintetizou as características centrais daquela que se tornou a mais popular mãe-de-santo do Brasil.

E agora, 21 anos depois da sua morte, acaba de ser lançada a primeira biografia sobre Mãe Menininha, que esmiúça, por meio de depoimentos e uma extensa pesquisa histórica, a vida da figura mais unânime no coração da população baiana.

Escrito pela psicóloga Cida Nóbrega e pela jornalista Regina Echeverria, o livro "Mãe Menininha de Gantois " Uma Biografia" reconstrói os primórdios do candomblé na Bahia, com o surgimento dos primeiros terreiros em Salvador, o qual se inclui o Gantois.

Ao longo de 318 páginas, é possível conhecer as relações que Maria Escolástica da Conceição Nazareth " nome de batismo da mãe-de-santo " estabeleceu com políticos, artistas e personalidades da época, além de sua conduta rigorosa e afetiva do terreiro de Gantois, a luta pela preservação dos costumes de seus antepassados e da religião africana.

"Mãe Menininha de Gantois era uma pessoa muito simples e, mesmo com as limitações que ela tinha (de saúde, por exemplo), conseguiu uma inserção social incrível, de inspirar artes, influir na cultura da Bahia e do Brasil. O livro mostra a história de uma pessoa que tinha uma meta, um objetivo, e foi adiante nisso até o fim", explica a psicóloga Cida Nóbrega, que também já havia se dedicado a outras biografias de personalidades do candomblé.

Recheado de fotos, o livro remonta a trajetória de Mãe Menininha a partir de sua relação com a bisavô, Maria Júlia, fundadora do Gantois que a iniciou na religião quando ela tinha apenas oito meses. Nesse momento, o destino de Maria Escolástica já estava traçado.

Na juventude, Menininha até tentou fugir da missão de conduzir o terreiro, assustada com as disputas internas que se sucederam à morte de sua mãe. Mas segundo seu próprio relato, foram os orixás que a levaram de volta.

A partir daí, com 28 anos completos, Mãe Menininha foi empossada como a ialorixá (espécie de sacerdotisa) do terreiro e o liderou com firmeza por longos 64 anos.

"Ao ser convidada para escrever esse livro, não sabia nada sobre a história dela, e o que mais me surpreendeu foi essa mulher ficar tantos anos na cama e ter conseguido conduzir aquele lugar com braço forte, ou seja, prova de que a autoridade independe de muitas coisas. Era uma mulher que, a princípio, não tinha poder nenhum, não era rica, não tinha nome e acabou virando uma das figuras mais respeitadas da Bahia", afirma Regina Echeverria, autora das biografias de personalidades como Elis Regina, Cazuza e Pierre Verger, esta última também ao lado de Cida Nóbrega.

De fato, Menininha passou muitos anos de sua vida sobre a cama de solteiro que ficava em seu quarto, devido a um problema nas pernas que prejudicava seu andar. Mas era exatamente naquele ambiente que a mãe-de-santo recebia todas as visitas, em conversas que duravam até duas horas.

Com a televisão ligada " seu passatempo favorito ", Menininha dava conselhos e ajuda a quem a procurasse. A TV, inclusive, servia às vezes como exemplo para seus ensinamentos e era a principal maneira da Menininha ter notícias do mundo de fora.

"Ela cuidava de muitas pessoas no terreiro. Se as mães não tinham onde deixar o filho, botavam lá. Era comum também artistas levarem suas obras recém-lançadas para que Mãe Menininha pudesse abençoar", explica Cida Nóbrega.

Veneração
Ela, inclusive, foi tema de muitas letras de música (confira a letra da mais famosa delas abaixo), pinturas e até de um enredo da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, em 1976.

Maria Bethânia, Carybé, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e inúmeras outras personalidades que frequentavam assiduamente o terreiro se referiam a ela com verdadeira veneração, como aparece nos depoimentos do livro.

Num desses relatos, o tradicional político baiano Antônio Carlos Magalhães, que durante anos consultou- se com Mãe Menininha, afirma ter sido depois da morte da ialorixá que as coisas ruins começaram a acontecer a ele, como de fato se pode averiguar em sua trajetória política.

Para a religião do candomblé, a mãe-de-santo também contribuiu de forma significativa na diminuição do preconceito proferido pela sociedade da época, principalmente na primeira metade do século XX.

"Ao abrir o terreiro do Gantois para a entrada de brancos, de artistas como Vinicius de Moraes e principalmente de pesquisadores e intelectuais, Mãe Menininha ajudou a diminuir o preconceito e popularizar a religião. Além de tudo, ela adorava a mídia, tinha o maior respeito por nosso trabalho", esclarece Regina.

E dessa mesma forma, sua filha e segunda sucessora, a Mãe Carmen, que atualmente comanda o Gantois, foi imprescindível para a realização das pesquisas que culminaram no livro.

"Quando tivemos a idéia dessa biografia, Mãe Carmen foi uma figura fundamental porque abriu a porta do terreiro para nós e deixou as filhas-de-santo prestarem depoimentos. Foi assim que conseguimos conhecer melhor o dia-adia de Menininha", afirma Cida. Algumas curiosidades interessantes também estão presentes no livro.

Uma delas remete ao próprio nome do terreiro de Gantois. Segundo fontes da época, sua origem se conecta ao belga Éduard Gantois, comerciante que exercia na Bahia o tráfico ilegal de escravos.

Como ele foi o primeiro dono das terras onde fica o terreiro, ironicamente o maior abrigo do candomblé no Brasil ficou batizado justamente com o nome de um traficante de negros.

Outro fato marcante, relacionado à própria publicação da biografia, é que o ano de 2007 possui fundamental importância no ciclo de luto pela morte de Menininha. Em agosto deste ano, quando se completar 21 anos que a mãe-de-santo faleceu, será feita a última cerimônia fúnebre, como mandam os preceitos do candomblé.

Só então se encerrará o ciclo de luto de Mãe Menininha de Gantois. Mas, na prática, se depender da popularidade dessa baiana, as comemorações de vida e morte se estenderão por muitos anos ainda.

AGENDA " "Mãe Menininha do Gantois " Uma Biografia", de Cida Nóbrega e Regina Echeverria. Lançamento da Editora Corrupio e Ediouro, 320 págs, R$ 59,90.

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