Comportamento

A internet mudou a forma de se ouvir música

Músicos destacam pontos positivos e negativos do streaming

Por Laura Maria
Publicado em 26 de março de 2017 | 03:00
 
 
 
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A canção “Love Me Tender”, do álbum “Música de Brinquedo” (2010), do Pato Fu, foi ouvida 600 vezes a mais no Spotify em relação ao número de CDs vendidos. O álbum físico “Bang Bang” (2016), da banda Gatilho, representa hoje apenas “um cartão de visita”. O estudante Diego Emanuel dificilmente teria conhecido a banda de folk metal Thuata de Danann se não fosse pela descoberta no Spotify.
 
As três situações são exemplos de mudança no modo de se consumir música desde a popularização dos serviços se streaming, que têm ganhado a cada dia mais usuários na web. Neste mês, por exemplo, o Spotify anunciou que tem 50 milhões de assinantes de seu serviço premium, que é pago, um crescimento de 66% em relação ao mesmo mês de 2016. Além dele, o Deezer, o Apple Music e o Tidal estão na lista dos serviços de streaming mais famosos.
 
De acordo com o pesquisador e músico mineiro Rafael José Azevedo, o modo de se consumir música muda a partir do momento em que o usuário tem a possibilidade de procurar na internet o que deseja escutar. A isso são somadas a disponibilidade de um extenso acervo musical e a garantia de um som de qualidade. “O Spotify, por exemplo, só permite que o artista envie os arquivos em formato WAV, melhor em relação ao MP3”, avalia.
Além disso, ao utilizarem os serviços de streaming, os ouvintes passam a ter acesso à música de forma personalizada. “Não é preciso mais escutar um álbum inteiro, apenas as músicas que se quer. O streaming também é muito cômodo, já que, com ele, não é preciso baixar músicas e, assim, ocupar espaço do HD de um computador”, diz.
 
O produtor musical e compositor Renato Villaça destaca que não é apenas a forma de escutar música que tem mudado, mas também como um novo trabalho se apresenta. “A tendência é que diminuam aos poucos os lançamentos de álbuns com várias faixas. Os singles devem crescer. Em vez de um artista lançar um álbum de 12 faixas, ele preferirá liberar uma faixa por mês”, analisa.
 
Curadoria. Outro trunfo do streaming está na possibilidade de se conhecerem artistas. Por meio da coleta de informações sobre o gênero musical escolhido frequentemente pelos usuários, os serviços de audição online criam um banco de dados que relacionam artistas e álbuns de estilo semelhante. O resultado é uma playlist criada de forma automática que reúne indicações de música especialmente para aquele usuário.
 
Essa curadoria é o motivo pelo qual Diego Emanuel usa os serviços via streaming. O estudante é assinante do Spotify Premium há um ano e afirma acessá-lo todos os dias. “O que mais gosto nele é a facilidade de encontrar outros estilos, como a banda Thuata de Danann, que eu provavelmente nunca descobriria sem a indicação do Spotify”, avalia.
 
O projetista Paulo Lourenço comenta que ainda não chegou a conhecer uma banda por meio da indicação do aplicativo. “Mas toda vez que algum amigo me indica uma música é no Spotify que procuro”, afirma ao dizer que não se lembra quando foi a última vez que comprou um CD.
 
O professor de comportamento do consumidor online Ricardo Figueiredo, por sua vez, avalia que a curadoria não é algo exclusivo dos serviços de streaming de música. “Isso já acontece no Facebook e até nas contas de e-mail, mesmo que indiretamente. É uma estratégia de marketing digital”, diz.
 
Influenciadores. Os serviços de streaming oferecem a possibilidade de os internautas montarem suas próprias listas de músicas e compartilhá-las com seguidores. O Spotify, por exemplo, além de apresentar as próprias playlists, promove perfis de formadores de opinião, de acordo com a quantidade de seguidores. A playlist do artista britânico Calvin Harris tem mais de 5 milhões de fãs. Também é destaque a seleção assinada pela banda Malta, com quase 113 mil seguidores.
 
Segundo Diego Lopes, baixista da Malta, o grupo é considerado a banda pop mais ouvida do Brasil. “É muito legal para a gente. Devemos isso aos fãs, porque o nosso alcance é orgânico”, comenta ao destacar que a banda está presente em todas as plataformas digitais.
 
Fã de rock, o técnico Guilherme Pereira também cria os próprios repertórios de rock, pop e música eletrônica no Spotify. “Para cada coisa que a gente faz na vida, é preciso uma trilha sonora, e às vezes a gente não encontra uma já pronta”, explica.
 
Artistas independentes. O jornalista Mairon Alves usa os serviços de streaming de duas formas: tanto para escutar músicas como para publicar os trabalhos da banda qual faz parte, a Gatilho. Ele afirma que antes ouvia músicas no YouTube, mas, depois da popularização do Spotify, migrou para a rede. Foi para lá também o mais recente trabalho da banda de rap e rock, o “Bang Bang”. O álbum também está no Deezer, no Apple Music e noGoogle Play. “Percebemos um alcance muito maior das músicas nessas plataformas. Tanto é que o disco físico virou um cartão de visitas”, afirma.
 
De acordo com o pesquisador Rafael José Azevedo, que também integra a banda belo-horizontina A Fase Rosa, porém, o funcionamento dessas plataformas segue a mesma lógica do mercado fonográfico. “Os usuários desse tipo de serviço só recebem propagandas de artistas já estabelecidos, basta observar o mercado da música sertaneja”, diz.
 
 

Números

US$ 0,0011 é quanto um artista ganha por música no Spotify, segundo a Gatilho.

8,7 bilhões de vezes foram ouvidas as músicas da Drake no Spotify, líder do ranking.

215 milhões de vezes foram ouvidas as músicas de Jorge e Mateus em 2016, líderes no Brasil.


Funções ‘escondidas’

Privado. No Spotify, é possível saber o que seus amigos estão ouvindo, assim como eles têm acesso às músicas que estão tocando no seu player. Mas, se você não quer que seus seguidores fiquem de olho no que está ouvindo, basta clicar em “Sessão Privada”, no menu de configurações da plataforma.

Controle remoto. O Spotify dá a opção para sincronizar o celular com o computador. Assim, o telefone funciona como controle remoto, em que é possível trocar as faixas e controlar o volume de onde estiver.

Karaokê. Tanto o Deezer quanto o Spotify podem ser utilizados como karaokê. O problema do primeiro é que as letras são passadas manualmente, e o do segundo é que a maioria das canções nessa função está em inglês.

 

Discussão

Do disco de vinil ao streaming: o que ainda precisa ser melhorado

O guitarrista e produtor belo-horizontino John Ulhoa acompanha as fases da produção musical desde a década de 80, quando integrou a Sexo Explícito. A banda lançou seus dois trabalhos em LP, o “Combustível para Fogo”, (1989) e “O Disco dos Mistérios ou 3 Diabos e ½ ou Sexplicito Visita o Sítio do Pica-Pau Amarelo ou Tributo a H. Romeu Pinto” (1991). A transição entre vinil e CD ocorreu quando ele já fazia parte do Pato Fu. “Rotomusic de Liquidificapum” (1993), primeiro álbum do quinteto, foi gravado em vinil, mas pouco tempo depois ganhou versão também no CD.

“Nos anos 80, estava acostumado com a produção dos discos. Era um processo misterioso, porque as músicas iam para a fábrica, e pouca gente tinha acesso a elas. Com o CD, as pessoas já passaram a copiar as músicas, e com o MP3 é que essa reprodução ficou descontrolada”, analisa.

O compositor e músico Flávio Venturini, que teve a carreira marcada pelos lançamentos em vinis nos grupos O Terço (entre 1974 e 1976) e 14 Bis (de 1979 a 1989), também acompanhou de perto essa transição e observa que a prática de baixar músicas da internet “foi a fase mais difícil”.

Tanto Ulhoa quando Venturini concordam que a distribuição de música por meio do streaming melhorou em relação à reprodução ilegal do MP3, e hoje ambos os artistas têm canções no Spotify, Deezer, YouTube, Apple Music e Soundcloud. “Há alguns anos, quando as pessoas perguntavam o que aconteceria com o mercado fonográfico, eu dizia que o futuro seria o streaming, porque a velocidade da internet ficaria mais rápida, e o acesso a ela seria facilitado”, comenta o músico do Pato Fu. “A internet facilitou a possibilidade de ser ouvido no mundo inteiro”, destaca Venturini.

Ressalvas. Se por um lado os artistas analisam que a reprodução via streaming é positiva, por outro eles observam que tanto os músicos como os compositores e os produtores precisam receber um valor mais justo pela reprodução. Atualmente, os serviços de streaming remuneram os artistas de acordo com a quantidade de vezes que a música foi escutada. “É uma quantia irrisória. É preciso que haja um equilíbrio entre o que a gente produz e o que eles pagam”, diz Venturini.

“Por mais que a ‘Love Me Tender’ tenha mais de 2 milhões de audições, isso em termos econômicos significa muito pouco”, avalia John.

O Spotify não respondeu ao Magazine sobre o valor que paga aos artistas por cada música executada, mas revelou que, desde 2008, gerou mais de US$ 5 bilhões em direitos autorais para artistas e gravadoras. (LM)


Reconhecimento autoral e de produção ainda é pequeno no streaming

Quem escuta as canções disponíveis nos serviços de streaming não tem acesso a certas informações essenciais, como o nome do compositor da música ou quem produziu o álbum. Para o pesquisador Rafael José Azevedo, isso só reforça um problema que existe há muito tempo na música popular brasileira.

“Muitas intérpretes já foram tomadas por engano como compositoras. E o contrário também aconteceu, como quando, por exemplo, o Rádio Táxi cantou músicas da Rita Lee. Além disso, detalhes de produção dos álbuns não são mostrados”, comenta.

De acordo com o produtor e músico John Ulhoa, do Pato Fu, o fato de as pessoas fazerem inúmeras atividades enquanto escutam música também contribui para essa recorrência. “Antigamente, quando alguém parava para ouvir música, queria saber, por exemplo, quem era o guitarrista. Hoje, os fãs da Katy Perry só conhecem a artista”, diz Ulhoa.

Além disso, o pagamento do compositor fica sujeito ou ao Ecad, ou às gravadoras. “Ainda não há consenso para saber se os serviços de música via streaming são uma execução pública ou uma venda de músicas”, analisa o artista. (LM)


"O CD é coisa do passado, eu mesmo não escuto mais. Avalio positivamente essa transição, pois a música agora chega mais rapidamente à casa das pessoas. Diferentemente de como era com a venda de um CD." Diego Lopes, baixista da Malta

FOTO: Leo Fontes
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Conectado. Diego diz que escuta músicas online durante dez horas por dia

 

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