Dramaturgia

A marca da maldade

Do teatro grego e Shakespeare às novelas, vilãs são sinônimo de sucesso e ajudam a refletir construções sociais

Por JOYCE ATHIÊ
Publicado em 29 de janeiro de 2017 | 03:00
 
 
 
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Destituídas de traços de ética ou moralidade, elas colocam o amor à frente de tudo ou, se convier, abandonam os laços amorosos quando a ambição pelo poder fala mais alto. Matam por vingança e cometem atos de crueldade em nome de seus interesses. Como um contraponto às belas e recatadas mocinhas, as vilãs, personagens que levam o público ao trânsito da aceitação e da repulsa, nos oferecem elementos de reflexão sobre representações sociais, em especial, da figura feminina.

Mas como explicar o fascínio que as vilãs despertam? Para a professora Tereza Virgínia Barbosa, da faculdade de Letras da UFMG, ele decorre, entre outros fatores, da identificação com a condição humana. “É simplesmente o fato de reconhecer que todos podemos escolher nossos caminhos, na nossa condição precária e sublime de criaturas humanas”, afirma. “As vilãs – como as santas – são a potencialização máxima de uma criatura, extremos de poder. Elas são a materialização da capacidade de vir a ser deus ou demônio. Ora, experimentar poder e força quando se está à míngua, enfraquecido, é ter a sensação de ‘empoderamento’ que todos procuram. Acredito que no âmbito da ficção é um fármaco. É bom que a violência se realize na ficção. Ela, deste modo, apazigua os desejos terríveis que todos temos”.

Nazaré. Quando a Globo anunciou que iria reprisar “Senhora do Destino” este ano, a notícia teve grande repercussão nas redes sociais. É a segunda vez que a novela escrita por Aguinaldo Silva em 2004 irá ao ar no “Vale a Pena Ver de Novo” – a primeira foi em 2009. Mais do que rever o folhetim de maior audiência da emissora nos últimos 20 anos (manteve uma média diária de 50 pontos no Ibope), os internautas festejaram a volta da vilã Nazaré Tedesco. “Escrita há 13 anos, ela (Nazaré) continua viva. Anda sozinha, vira meme. Teve um dia que ela chegou a ser a mais citada no mundo nas redes sociais. Isso é uma loucura. É uma personagem divina”, conta a intérprete da vilã, a atriz Renata Sorrah, 69, se referindo ao fato de que, no ano passado, a personagem virou meme na internet e um gif, em que Nazaré observa todos os lados como se estivesse confusa, foi compartilhado por internautas de vários países.

“Avenida Brasil”. Outra vilã de grande sucesso na TV é Carminha (Adriana Esteves), personagem que, há cinco anos, chegou à telinha pelas mãos de João Emanuel Carneiro, em “Avenida Brasil” (2012). A novela foi licenciada para mais de 150 países e está entre os produtos mais vendidos da TV Globo. Parte desse sucesso se deve a Carminha, que presenteava o espectador com o reconhecimento de seus próprios desejos e instintos de crueldade.

Assim como Nazaré, Carminha ajuda a refletir sobre algumas representações da sociedade brasileira. “Casada por interesse, seus dois filhos eram do amante que ela ajudou a casar com sua cunhada. Sempre vestida de branco, símbolo da pureza, destilava seu veneno, fazendo-se de boa mulher, moralista e amante da família”, descreveu Gilvan Ferreira de Araújo, autor da tese de doutorado “Protagonismo da Classe C na Avenida Chamada Brasil: Representações, Enquadramentos e Empoderamentos da Realidade na Ficção da Telenovela”.

Araújo aponta que as questões de vilania se adaptam às mudanças sociais, sendo preciso interpretá-las em seus contextos. “A vilania na Idade Média estava associada àquele que não era nobre, ao sujeito da vila que agia de forma amoral. Na atualidade, por exemplo, a questão financeira já não é o determinante. Odete Roitman (Beatriz Segal), de ‘Vale Tudo’ (1988), era milionária. Já Carminha está mais próxima do sujeito comum brasileiro. Independentemente da classe, elas são destituídas do lugar da moral”, afirma.

Feminino. Se, por um lado, Carminha trouxe a representação de uma classe pouco vista socialmente, por outro, ela perpetua a visão estigmatizada da mulher que se casa com um homem rico por interesse, ato justificado na trama por sua condição social. Outras personagens que também figuram na memória do espectador, como Raquel, de “Mulheres de Areia” (1993), ou Laura, de “Celebridade” (2003-2004), vilãs destruidoras de relações amorosas movidas pela competição entre mulheres e pelo desejo de vingança, também carregam noções que o senso comum tende a associar ao feminino.

“Creio que, nas novelas, as vilãs, atualmente, beiram o caricato. Isso pode ser um machismo escamoteado. As novelas, convenhamos, na sua maioria, estão sendo escritas por homens, algumas com parcerias femininas, mas... Vilãs guerreiras, sem culpa e com sucesso, estão mais lá na antiguidade, ou bem ocultas, no seio familiar. Ao contrário, os vilões masculinos – por exemplo, o Coringa, do Batman – continuam a impor respeito, são dignos e atemorizantes”, afirma Tereza.

Retorno. Nazaré, que Sorrah prefere chamar de heroína, também traz aspectos relevantes para se pensar a representação do feminino. O universo da personagem é permeado pela prostituição, pelo aborto e pelo forte desejo de ser mãe. “Ela era prostituta de rua e vai numa escalada sem limites para alcançar o que deseja. Ela não podia, mas queria muito ser mãe. Para isso, ela sequestra uma criança e esquece o que fez, movida pelo amor à filha. E ela tem humor, é o que a salva. Os planos dela nunca dão certo”, comenta. Além dos insultos que proferia a sua rival, chamando-a de “anta nordestina” e “songamonga”, Nazaré também divertia o público quando sambava em cima do colchão.

A vilã, que jogava suas vítimas escada abaixo, vai retornar na próxima novela de Aguinaldo Silva (“O Sétimo Guardião”, prevista para março de 2018). O escritor já anunciou isso em seu blog. “Confirmo com todas as letras em inglês, para ficar mais enfático:  ‘yes, she will be back’ – vai voltar a única vilã de novela que virou personagem da internet no mundo inteiro!”, confirmou Silva.

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Teatro

Narrativas clássicas trazem mulheres cruéis e indomáveis

Pensar os papéis de vilãs requer um olhar para o teatro grego, campo fértil onde nasceram personagens como Clitemnestra, Jocasta, Electra e, o grande mito, Medeia. “De fato, o teatro ateniense tem muitas figuras que se enquadrariam na definição de vilãs, personas femininas poderosas e cruéis. Contudo, é preciso ter em mente que essas mulheres foram criadas por expressões masculinas e acabaram sendo, de algum modo, mulheres que agem de forma predominantemente viril, como heróis, matando e vingando-se como guerreiros”, afirma a professora Tereza Virgínia. “A vilã só existe por oposição ao vilão. O caso é que uma vilã, nas tragédias atenienses, age como um guerreiro. E o vilão ateniense age como? Como um macho, e a fêmea, sem ética. É isso que ocorre hoje?”, indaga a professora.

A clássica Medeia, no entanto, rompe os parâmetros para se pensar a representação feminina em uma construção carregada de traços de vilania. Abandonada pelo marido que optou por outro matrimônio, mais vantajoso para suas ambições políticas, Medeia, tomada pela desilusão e pelo desejo de vingança, mata os dois filhos que teve com Jasão. Ainda que no papel da mulher abandonada, trocada por uma mulher mais jovem, a reação de Medeia faz ouvir a voz idealizada de uma mulher emancipada, como afirma Tereza.

“Ela iguala a relação entre os gêneros, age com lucidez e, ao mesmo tempo, com paixão guerreira e aniquila seu adversário. No final da tragédia, ela sai resplandecente de cena, no carro de seu avô, o Sol, olha para o ex-marido vencido e diz algo que, modernamente, podemos supor que qualquer mulher gostaria de dizer ainda hoje para alguém que a abandonou: ‘Fica no mundo, envelhece e desaparece no esquecimento; eu, como uma deusa, saio de cena por cima, busco uma peça melhor!’”, pontua a professora.

Mente sórdida. Seguindo na linha dos clássicos, Shakespeare também recheou sua obra de grandes vilãs, sendo a maior delas Lady Macbeth, a mulher que convence o marido a matar o rei para tomar o poder. “Ela é a grande articuladora da trama. Tem a mente sórdida. É um ser que pensa na sombra, faz intrigas, promove inverdades”, afirma o diretor Pedro Paulo Cava. “Isso é o que a humanidade é. A vida não é para amadores, há sempre a perversidade do ser humano. E vejo que o século XXI traz mais perversidade, como o racismo, a intolerância à diferença, a falta de ética”, completa.

Sobre a representação dessas mulheres, Renata Sorrah, que já interpretou Medeia e Lady Macbeth, prefere olhar para essas personagens em sua dimensão humana. “Não gosto de chamá-las de vilãs porque são verdadeiras heroínas. São mulheres indomáveis, capazes de atos cruéis para bancar esses desejos. Reconhecemos nelas o mal que há em nós. Como atriz, para fazer uma personagem como essas, não se pode julgar. Tem que olhá-las como humanas. Entender a dor da mulher que mata os filhos que ama. E Medeia é reconhecível. Quando apresentamos a peça na periferia do Rio de Janeiro, eu via mulheres me olhando e se reconhecendo na personagem”, afirma a atriz.

“Podemos ver nelas as mulheres do século XXI que estão chegando ao poder que, exercido nas mãos delas, pode ser tão cruel quanto pelos dos homens. Poder é poder. Não se faz com bondade”, afirma Cava.

A professora Tereza Virgínia, lembra, no entanto, que tais representações da mulher – ainda que realizadas por Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Shakespeare, Racine, Corneille e mesmo Chico Buarque – retomam ao homem falando no lugar de mulheres. “Até aí, que bom que falaram e fizeram delas protagonistas, mas, ainda assim, elas continuam sendo plasmadas pelos homens, os deuses da palavra”, pontua.

FOTO: ERNESTO VASCONCELOS/divulgação
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Shakespeariana. Renata Sorrah interpreta Lady Macbeth, na direção de Aderbal Freire Filho

 

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