ENTREVISTA COM

A patrulheira das traduções

Tradutora do inglês, francês e italiano, a curitibana se tornou a principal vigilante da qualidade das traduções em circulação no mercado brasileiro, à frente do blog www.naogostodeplagio.blogspot.com. Mantém atualizada uma lista negra das versões não recomendadas e já comprou brigas com as editoras Landmark e Martin Claret.

Por LUCIANA ROMAGNOLLI
Publicado em 02 de abril de 2011 | 19:11
 
 
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Há quanto tempo você mantém o blog Não Gosto de Plágio e o que a motivou a criá-lo?
Criei o Não Gosto de Plágio em outubro de 2008, trazendo materiais que eu tinha publicado num blog coletivo chamado Assinado Tradutores. Desde 2002, críticos literários como Alfredo Monte e Ivo Barroso já denunciavam a ocorrência de plágios e cópias indevidas de traduções antigas. Em 2007, o jornal "Opção", de Goiânia, e a "Folha de S.Paulo" trouxeram a público plágios praticados pela editora Martin Claret. Na mesma época, o tradutor Saulo von Randow Jr. apurou que o mesmo procedimento tinha sido adotado pela editora Nova Cultural. A partir daí, comecei a pesquisar essas e outras ocorrências.


Você diria que nem editoras nem leitores dão suficiente atenção à qualidade e à proveniência das traduções disponíveis no mercado brasileiro?
Quanto à qualidade das traduções que circulam, eu diria que é variável. Num balanço rápido, tendo a crer que houve nos últimos 20 ou 30 anos um salto qualitativo na tradução de livros no Brasil. A atividade está mais madura e, principalmente, tem se generalizado entre as editoras a percepção de que a qualidade da tradução faz uma grande diferença. Leitores, em sua maioria, sabem distinguir claramente entre traduções boas e não tão boas. Em inúmeros sites, blogs e fóruns, surpreende a preocupação com a qualidade das traduções no Brasil.


Quais são as principais estratégias de plágio? Pode dar exemplos?
A mais banal é a cópia pura e simples de traduções antigas, esgotadas há muito tempo. Um exemplo é "O Homem que Foi Quinta-feira", de G. K. Chesterton, pela editora Germinal, com tradução atribuída a Vera Lúcia Rodrigues, mas que não passa da cópia fiel da tradução de José Laurênio de Mello, pela Agir. A editora Centauro também costuma reproduzir literalmente traduções das quais se apropriou: "A Questão Judaica de Marx", "Minha Irmã e Eu", de Nietzsche (apócrifa), "O Desenvolvimento do Psiquismo", de Leontiev, e outros. A seguir, vêm as tentativas de disfarçar inabilmente a cópia, com maior ou menor número de adulterações da tradução inicial: é o procedimento mais utilizado. Existe também a montagem de duas traduções diferentes, geralmente com tentativas de disfarçar a apropriação. Veja-se, por exemplo, "Arte Poética de Aristóteles", pela editora Martin Claret, com tradução em nome de Pietro Nassetti: é uma montagem do texto e das notas de Antônio Pinto de Carvalho com as eruditas notas de Eudoro de Souza. Há ainda os casos de cópias de traduções portuguesas - e, aí, tenta-se adaptar o texto ao português do Brasil, nunca com pleno sucesso. Na maioria dos casos, essas fraudes utilizam edições esgotadas de editoras que já encerraram suas atividades, como a Vecchi, a Minerva e a Atena. Obras esgotadas há muitas décadas, abandonadas, formam uma espécie de limbo editorial. Um ponto muito positivo na proposta de revisão da lei dos direitos autorais, que esteve em curso durante a gestão anterior do MinC, era a possibilidade de se conceder uma licença não exclusiva a editoras interessadas em recuperar esse patrimônio tradutório jogado às traças.


Você declinou da responsabilidade pela tradução do livro "Como Funciona a Ficção", do crítico James Wood, publicada pela Cosac Naify, porque a editora usou, em vez das suas, traduções pré-existentes dos trechos citados pelo autor, mas que não corresponderiam ao estilo original que o crítico pretendia destacar. Como ficam suas relações com a editora?
O problema de "Como Funciona a Ficção" foi muito localizado. Embora eu tenha ficado numa situação que me fez vir a público, continuo a colaborar com a Cosac com outras traduções.


Você já entrou com 15 petições contra traduções de autoria forjada. Pode comentar os casos mais acintosos de plágio que já encontrou, fazendo uma "lista negra" básica para o leitor? No Não Gosto de Plágio, criei uma seção listando os livros que não recomendo e uma seção com cotejos entre a edição legítima e a edição espúria. São todos eles realmente acintosos! A cópia fiel é ridícula ao supor que os leitores são ignorantes; a cópia disfarçada é patética pela má-fé ainda mais evidente.


Denúncias suas causaram reações negativas de editoras, que até entraram com processo contra você - como a Landmark. Houve, ao contrário, casos em que as editoras mudaram o rumo de suas atividades?
Felizmente! Na verdade, várias delas acataram o que apontei, sem represálias nem ameaças, e não precisei recorrer ao Ministério Público. É o caso da Nova Cultural, da Rideel, da Madras, da Cedic, que prontamente retiraram as obras espúrias de circulação e catálogo. Recebi apoio de diversas editoras íntegras.

Quais são as suas "brigas" atuais?
Ufa, felizmente não tenho visto novas ocorrências de fraudes em tradução. Quem acompanha o blog pode observar que, até onde consigo acompanhar, a prática não só estacionou, mas também se reduziu muito. Mas - infelizmente! - muitas dezenas, talvez mais de uma centena, de obras espúrias continuam em circulação. As ações demoram para transitar nos tribunais, as livrarias em sua maioria continuam a vender obras que, em alguns casos, até mesmo o próprio editor admite publicamente serem espúrias. Em suma, os leitores precisam continuar atentos para não serem enganados. A briga continua, mas em marcha lenta: as investigações sobre a editora Martin Claret - o caso mais escandaloso, pela quantidade de obras irregulares ainda à venda -, instauradas por determinação do Ministério Público, estão em andamento em pelo menos dois processos independentes. Há ainda uma ou duas editoras com obras bastante duvidosas em seus catálogos, sobre as quais estou reunindo dados e pretendo, futuramente, trazer esses casos a público.


Como o leitor pode se precaver ou se defender de uma má aquisição?
Para se precaver, tem que se informar. Para se defender, sei de pelo menos um caso de leitor insatisfeito que, após contatos infrutíferos com a editora do livro, recorreu ao Tribunal de Pequenas Causas de sua cidade, e o juiz acatou a reclamação. Mas imagino que o leitor lesado pode, em primeiro lugar, pedir a devolução do dinheiro junto à livraria ou à própria editora. Caso enfrente alguma dificuldade, talvez possa registrar a ocorrência na delegacia. Caminhos existem vários. De qualquer forma, é sempre um desgaste e me parece um absurdo que tenhamos de chegar a tal ponto.


Outro aspecto a ser levado em conta - e é assustador - é a presença dessas obras espúrias em dezenas de milhares de artigos, dissertações, teses, bibliografias de cursos universitários, concursos vestibulares, licitações públicas, de Norte a Sul do país. Além dessa inacreditável difusão, tem-se a perpetuação da fraude sob a forma de referência bibliográfica. Mesmo quando todas essas imposturas estiverem fora da circulação, continuarão presentes em todo o sistema de ensino. E não me refiro só a estudantes, talvez mais desavisados, mas também a professores que as recomendam em seus cursos.

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