Cinema

Aclamado '120 Batimentos por Minuto' finalmente chega à capital

Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes tem pré-estreia neste sábado (13) em Belo Horizonte

Por Daniel Oliveira
Publicado em 13 de janeiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Em uma cena de “120 Batimentos por Minuto”, que tem pré-estreia neste sábado (13) na capital, um personagem descreve um carro pego de surpresa por uma nevasca, parado no meio da estrada. Era impossível ver se ele estava no acostamento ou não, e os outros veículos passavam tirando fininho, podendo bater nele e destruí-lo a qualquer momento. E ainda assim, os passageiros dentro do carro se sentiam felizes porque estavam com quem amavam.

O que vem a ser uma metáfora perfeita dos gays vítimas da Aids nos anos 80 e início dos 90. Depois da libertação sexual da década de 70, eles foram pegos de assalto pela epidemia e, abandonados à própria sorte pelo poder público, tiveram que assistir às pessoas que amavam e à sua comunidade serem dizimadas pelo vírus – numa roleta russa em que se podia sempre ser o próximo.

É contra essa negligência que os ativistas do ACT UP – organização civil formada pela população LGBTQ, simpatizantes e soropositivos nos EUA – lutaram. E “120 BPM” conta a história da versão francesa do grupo. Formado por jovens inspirados por seus pares norte-americanos, ele expôs e combateu o descaso do governo de François Mitterrand – que, assim como Reagan nos EUA e tantos outros políticos e conservadores, foi um dos grandes responsáveis pelo maior genocídio consentido de uma minoria desde o holocausto.

O filme do cineasta Robin Campillo (do ótimo “Eastern Boys”) narra a jornada de Nathan (Arnaud Valois), jovem gay que entra no grupo e se apaixona pelo soropositivo Sean (a revelação Nahuel Pérez Biscayart). Mas o romance é a mera ferramenta que o longa usa para retratar as ações do ACT UP e os conflitos, discussões políticas e tensões naturalmente surgidos entre pessoas comuns assumindo o peso de solucionar uma crise de que o Estado se absteve – isso enquanto morriam e viam os amigos mais queridos morrerem a seu lado.

Prazer. “120 BPM” não tem medo de encenar e expor o lado mais politizado dessa briga nem de mostrar que não existe ativismo que não incomoda – que ovos foram quebrados, e nem sempre a omelete ficou boa. Seus maiores méritos, porém, são dois. O primeiro é, com um elenco diverso, entender que não existe “gays” como uma massa indistinta e homogênea, mas sim um grupo de pessoas diferentes com opiniões muitas vezes opostas, que nem sempre, ou quase nunca, pensam igual ou concordam entre si – algo que a montagem ressalta ao mostrar a mesma ação do grupo sob diferentes pontos de vista.

E o segundo é retratar como, mesmo em meio à pior epidemia do século XX, os ativistas não deixavam de sentir prazer e viver sua sexualidade. Algumas das cenas mais bonitas do longa são as do grupo na balada, que Campillo filma quase como um culto, uma experiência religiosa. Porque o clube, a boate, é nossa igreja. E cantar e dançar ao som de uma música bem trash da Madonna ou da Britney Spears é nossa forma de oração, de nos conectar com quem nós somos e com o Deus que mantém isso vivo.

Um dos principais motivos pelos quais Mitterrand, Reagan e a maior parte do mundo não fizeram nada na época para conter a Aids é que, nas feridas, no aspecto esquelético e na debilidade da doença, o preconceito deles reconhecia a forma como realmente enxergavam os gays. Para eles, era certo que o HIV exterminasse toda aquela alegria e o orgulho surgidos nos anos 70 – o vírus era uma ferramenta de extinção da dignidade que eles rejeitavam. E para além do ativismo, da política e da luta, a melhor forma de responder a isso era viver. Transar. Beijar. Dançar. Rebolar. Ousar sentir o prazer de ser gay em todas as suas mais desavergonhadas formas – e as cenas na boate, com a ótima trilha e a fotografia retratando essa alegria resistindo ao inimigo invisível que dançava entre eles, deixa isso bem claro.

Negligência. Porque – e isso é o grande tema de “120 BPM” – o pessoal é o político. Não por acaso, mesmo com todas as reuniões do ACT UP, a conversa mais politicamente carregada do longa, sobre de quem é a responsabilidade em uma transa que resulta numa contaminação, acontece durante uma belíssima trepada. A luta da organização é o cerne do filme, mas ela só se materializa na sua razão de ser, que é a história de Nathan e Sean.

É no arco de Sean que o roteiro contrapõe a coexistência de vida e morte, do claro (reuniões) e escuro (boate) da fotografia, da época. É na reação dele à visita do líder do grupo no hospital que o espectador sente a dor e a indignação de todos aqueles que, mesmo com toda a sua luta e resistência, perceberam que a cura talvez não chegaria a tempo. Por pura e total negligência. Porque alguns usaram a Aids como arma de seu preconceito, e outros como forma de ganhar dinheiro.

“120 BPM” é uma ode aos heróis que sobreviveram a essa guerra, e uma elegia àqueles que pereceram, mas lutaram para que Pabllo Vittar, Frank Ocean, Pedro Almodóvar, eu e tantos outros estivéssemos aqui hoje. Com a cara no sol, demandando nosso direito a viver, a transar, a brigar, a errar, a ter acesso à saúde pública. E à dignidade de simplesmente existir e amar sem temer.

Sem espaço

Ecoando a negligência e a falta de atenção ao tema ressaltadas no próprio filme, “120 BPM” não encontrou salas em Belo Horizonte para sua estreia, na semana passada. Tradicionalmente, os filmes da Imovision sempre passaram no Belas Artes. Mas o espaço não exibe longas da distribuidora desde “Lola Pater”, em 23 de novembro. Produções como “Lucky” (último filme do ator Harry Dean Stanton) e “Corpo e Alma” (Urso de Ouro em Berlim) não chegaram na capital. O Belas e a Imovision negam um possível desentendimento entre as duas empresas. 

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