Movimento Aldravianista

Atrás de cada porta há um novo leitor voraz  

A aldravia, gênero criado por um casal de poetas de Mariana, faz escola literária pelo mundo todo

Por LUCAS SIMÕES
Publicado em 07 de fevereiro de 2016 | 04:00
 
 
 
normal

O escritor moçambicano Mia Couto diz conhecer crianças africanas que não leem uma palavra sequer, mas são capazes de contar histórias fantásticas sobre o céu, as estrelas e suas próprias vidas. A mesma máxima parece transbordar pelos olhos da artista plástica Andreia Donadon e do professor de semiótica José Benedito Donadon. Para eles, é como se cada criança ou adulto que às vezes nem se interessam por livros fossem não só potenciais leitores, como também escritores natos.

De um projeto pequeno, realizando oficinas poéticas para crianças carentes e indo de porta em porta dos vizinhos para distribuir livros pela cidade histórica de Mariana, na região Central de Minas, eles criaram a aldravia: o primeiro gênero poético nascido no Brasil, idealizado para democratizar a poesia além da academia universitária, das editoras e do próprio público restrito que muitas vezes a lê.

“A palavra aldravia é uma união de aldrava, usada para bater às portas das casas portuguesas de forma cordial, e de via, no sentido de abrir novos caminhos. Nós pensamos que a poesia não poderia ficar só para um público, para o ‘poeta que sabe fazê-la’ e os que sabem interpretá-la. Todos são capazes de fazer poesia. Temos que despertar esse interesse de porta em porta mesmo”, diz Andreia.

O Movimento Aldravianista tomou forma há 16 anos, através do “Jornal Aldrava Cultural” –- uma publicação despretensiosa e inicialmente alternativa de Mariana, que fomentou novo espaço de debate sobre literatura, acesso aos livros e constituição de uma nova forma poética a partir do ano 2000. Nesse processo, Andreia e José, junto a outros poetas de Mariana, como Gabriel Bicalho e J.S. Ferreira, elaboraram um forma coletiva de fazer poesia.

De modo geral, a aldravia não exige temática, fórmula ou métrica. Apenas uma forma sugestiva: seis palavras, sendo uma por linha, sem uso de vírgula ou maiúsculas (veja a peça ao lado). “Propusemos que o movimento literário não seria como a corrente natural que os poetas seguem, a da metáfora. Substituímos a metáfora pela metonímia. Ou seja, a palavra é poética solta no papel, por si só, sem uma explicação necessária. E, com isso, começamos a construir um sujeito leitor autônomo, que abre a cabeça para um leque de interpretações em cima de construções simples”, diz José Donadon.

EDITORA SOLIDÁRIA. Porém, muito além de criar um gênero que pudesse se encaixar no balaio da literatura brasileira, a aldravia abriu as portas para que um novo modelo editorial solidário fosse colocado em prática. Dois anos após o nascimento do movimento, em 2002, a Editora Aldrava Letras e Artes entrou em funcionamento com um diferencial. “Decidimos que não queríamos vender os livros nem fazer contrato com alguma distribuidora. Mas, sim, doar para bibliotecas, escolas e pessoas comuns”, explica Andreia.

E aí começou uma revolução. Até hoje, 87 obras foram publicadas pela editora – que segue a todo vapor em novas edições neste ano (leia mais no box abaixo). Todos os livros fogem das regras tradicionais de romances densos, livros-poemas temáticos complexos ou publicações de auto-ajuda. Desse catálogo, 40 mil exemplares foram doados, abrangendo 20 cidades em diversas partes do país, como Ouro Preto, Santa Bárbara, Catas Altas, em Minas, além de Maringá (PR), Paranavaí (PR), Porto Alegre (RS) e Brasília. “Um dos nossos casos mais legais aconteceu no Mato Grosso do Sul, quando um índio pediu nossos livros para traduzir na tribo dele porque ele não conseguia direitos autorais de outras obras para publicar. Mandei mais de 60 livros nossos”, conta Andreia.

FORMAÇÃO. Aliado a essa vontade, o casal fundou o projeto Poesia Viva, em 2007, que passou a percorrer casas de pessoas para conversar, deixar livros e revelar o prazer da leitura. Dois dos leitores mirins fisgados por essa onda literária ao receberem a visita do casal foram Maria, 6, que nem lê ainda, mas não abre mão de visitar a casa de Andreia e José, e Victor, 8, que já devora seus primeiros livros. Impulsionados pela mãe, a dona de casa Ana Luiza Soares, 28, os dois começaram a frequentar a sede do Movimento Aldravinista, no bairro São José, na Quadra do Zé Pereira, onde uma biblioteca recheada de histórias contemporâneas aguarda jovens e adultos.

“Os meninos tiveram um interesse tão grande por livros novos. Histórias de gente comum, gente como a gente. Por isso trago eles aqui, num ambiente colorido, interessante, que atiça o prazer de ler sobre a realidade deles mesmos”, diz Ana.

O livro preferido de João é o volume “Os Quatro Meninos” (Editora Aldrava Letras e Artes, 2014). “Esse faz o maior sucesso porque usamos diálogos diagramados em caixas de bate-papo, como se a literatura se transportasse para qualquer ambiente, atraindo a criança”, diz Andreia em fala agitada, enquanto volta e meia para a conversa para recolher um livro que ela sabe exatamente onde está no acervo caseiro que ultrapassa 15 mil exemplares.

O imóvel de três andares é uma casa de artes aberta ao público em tempo integral. Quase todas as paredes são preenchidas com versos e tintas coloridas dispersas, quadros, trechos de livros. Até o banheiro habita pequenas publicações, folhetos, poemas em azulejos, enquanto a cozinha sustenta um grafite com inscrições poéticas. Um visual que fascinou as irmãs Júlia Eduarda dos Santos, 13, e Thais Caroline dos Santos, 16. Elas haviam conhecido o espaço há uma semana quando o Magazine esteve em Mariana, e criaram uma espécie de segunda casa por ali.

Júlia, que diz fazer suas poesias sozinha, encontrou incentivo nas aldravias. “O mais legal é que a aldravia parece ensinar a gente a não ter medo de escrever. Pelo contrário, nesse lugar inspirador, todo cheio de poesia pelas paredes, diz que também podemos fazer as nossas”, se empolga a adolescente. Mais cautelosa, Thais ainda acha difícil escrever poesia e “entender esse mundo”. Mas parece ter aprendido que a leitura é inerente a esse processo natural.

“Ter conhecido essa casa, a Andreia e esses livros foi uma nova porta para mim. Ler virou um hábito, não obrigação”.

Leitores mirins também organizam sua poesia

Ainda no início do Movimento Aldravista, o garoto Ryan Marinho Martins recebeu a visita de Andreia Donadon, munida de um kit com seis livros e a vontade de sempre de conquistar leitores. “Ele foi um dos casos mais marcantes, porque tinha perdido o pai havia pouco tempo, e a mãe disse que ele não pegava em um livro. Mas depois que deixei alguns na casa dele, para minha surpresa, ele não só leu todos, como resolveu leva-los à escola”, diz Andreia.

Dessa atitude simples, nasceu a Academia Brasileira dos Autores Aldravianistas Infantojuvenil (Abaai), situada em Santa Bárbara (MG), onde amigos de Ryan e outros jovens não só quiseram conhecer a aldravia, como escrever em massa. “Eles montaram uma biblioteca com meu nome e queriam tanto escrever que tivemos que criar a associação com o apelo juvenil para condensar as publicações dessas crianças”, diz Andreia.

Em Blumenu, Santa Catarina, em breve haverá a segunda representação da Abaai, na Escola Técnica do Vale do Itajaí. A inauguração do novo braço do movimento deve acontecer em abril, com o lançamento da terceira coletânea de aldravias escritas pelos alunos .

Aldravia pelo mundo

Muito além das fronteiras natais, na histórica cidade de Mariana, a aldravia atingiu o mundo todo. Em 2009, o projeto Poesia Viva, que distribui kits de livros a crianças, jovens e adultos pelo Brasil, foi premiado pelo Ministério da Cultura (MinC) dentro do edital Todos por Um Brasil de Leitores. A partir daí, uma série de autores de diversos países se interessaram pelo gênero e começaram a praticar o estilo.

Tanto que, em 2012, o movimento levou 33 participantes para o Salão do Livro de Paris – após 17 anos sem que o evento tivesse a presença de brasileiros. Lá, eles lançaram a coletânea “Écrivains Contemporains du Minas Gerais” (Editora Aldrava Letras e Arte, 2012) e encontraram seguidores da aldravia de várias nacionalidades. Entre eles, a escritora francesa Athanase Vantchev de Thracy, que lançou o livro “Aldravias” – sua estreia no gênero –, e o poeta português Vitor Escudero, também estreante no estilo com a obra “Pão Nosso – Aldravias Portuguesas”.

“Ele foi um dos mais empolgados na comitiva. Me agradeceu e se disse encantado com a simplicidade da aldravia e como era gostoso exercitar palavras de sua própria cultura sem amarras. Acho que o nosso alcance internacional só provou que a aldravia nasceu com esse caráter de democratização explícito, entendível para qualquer idioma. E isso é compartilhar novas descobertas que fazem a gente refletir e olhar nossos hábitos, sentimentos e costumes certamente de formas distintas, com interpretações que talvez não veríamos em pontos finais e regras ortodoxas demais para a poesia livre. Foi uma surpresa ter gente de ouros países fazendo aldravia. Não fazíamos ideia do alcance”, relembra Andreia.

No mesmo Salão do Livro, os mineiros ainda descobriram um coletivo de escritores espanhóis que também acabavam de lançar o livro “Aldabas a Cinco Vozes” (Editora Kelps), em produção conjunta de Edir Meirelles, Juçara Valverde, Luiz Gondim, Marcia Barroca, Messody Benoliel, moradores de Salamanca, na Espanha. “Esse trabalho nos surpreendeu tanto porque não era alguém tentando fazer poesia de outras maneiras. Era um grupo inteiro com inspirações em comum”, diz Andreia Donadon.

Além de publicar suas próprias aldravias, a professora portuguesa de poesia Celeste Cortez, que atua na Universidade Sénior de Sintra e na Academia Sénior de Cascais, em Portugal, resolveu levar a poesia mineira, que ela se refere como “amor à primeira vista”, para suas salas de aula.

“A poesia aldravista é simplicista, profunda, concisa, sintética, com novos ritmos sonoros, versos livres de amarras e, pela sua exiguidade ou nenhuma pontuação, não limita interpretações, desenvolvendo a criatividade, o prazer, a sensibilidade, o espírito poético, sendo um estímulo para os neurônios. Repensei que deveria dedicar-me a aprofundar a poesia aldravista para transmitir aos meus alunos da mesma maneira como lhes transmiti ou relembrei outros tipos de poesia. Fiquei viciada”, diz a professora portuguesa.

Ela publicou o livro “Cântico de Palavras – Aldravias” em 2013, tendo a segunda edição no ano seguinte. E trata sua estreia, que deverá ser seguida por outros volumes, como uma forma de difundir um gênero universal. “Sei que alguns poetas aldravistas usam meu livro nas suas oficinas de poesia aldravista no Brasil e em outros países, e isso me enche de orgulho, por ter contribuído para divulgar essa arte sublime de poesia aldravista, que veio para ficar na poesia universal”, completa Celeste Cortez.

Poetas por aí

Milhares.
 No site Recanto das Letras, que condensa gêneros literários no Brasil, a aldravia aparece com 13.811 publicações de diversos autores do Brasil e exterior. Apesar de ter notícias de escritores oriundo de países como Moçambique, Turquia e até Japão, Andreia e José Donadon não conseguem estimar quantos poetas do gênero existem espalhados pelo mundo. “Podem ser milhares”, diz Andreia.

ABC da Aldravia

RegrasAldravia, poema composto de até seis versos univocabulares, com sintaxe paratática (por coordenação), livre de amarras que venham a implicar na limitação de interpretações. Na aldravia, a palavra é o elemento essencial formador da poesia; por isso, a aldravia prescinde da utilização de recursos visuais adicionais, nada obstante aceitar-se experimentação que não torne complicada a leitura do poema. A partir do conceito “poudiano” de “o máximo de poesia, num mínimo de palavras, o poeta aldravianista deve observar os seguintes critérios para a elaboração das aldravias:

- Iniciar os versos com letras minúsculas. Em caso de nomes próprios, vale a opção do autor

- A divisão em palavras-verso já implica pausa; por isso, não é recomendada a utilização de pontuação. Além disso, a pontuação limita possíveis interpretações relativas a livres escolhas do leitor em deslizar pausas para criar novos sentidos:

Mineiro tira minério cimenta seu cemitério (Andreia Donadon/MG) 

- As pontuações de interrogações ou de exclamação podem ser utilizadas, se a sintaxe da aldravia, por si só, não denunciar sua proposição:

Lágrimas de luz: estrelas choram (José de Castro/RN)

- Nomes próprios duplos (com ou sem ligação por hífen), cuja divisão resulta em outro nome, como Di Cavalcati e Van Gogh, podem ser considerados único vocábulo

- Nomes e formas pronominais ligadas por hífen podem ser considerados vocábulos únicos

- Privilegiar a metonímia e evitar a metáfora. Sugerir mais do que tentar escrever todo o conteúdo. Incompletude é provocação aldrávica

La metáfora del aplauso nos traiciona (Isabel Gómez/Chile)

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!