“do Pó da Terra”

Barro, cultura da necessidade 

Fotógrafo Maurício Nahas registra vida e cultura das ceramistas do Vale do Jequitinhonha em projeto que envolve livro, filme e exposição

Por Lucas Simões
Publicado em 27 de setembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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O chão de barro rachado é a miséria lembrando como a monocultura de eucalipto matou a agricultura familiar por ali. Ironicamente, o mesmo barro virou matéria-prima da cerâmica, moldada pacientemente por mulheres que criaram uma cultura e um trabalho para contrariar a imposição da fome. Nesse retrato doído e longínquo do Vale do Jequitinhonha, o fotógrafo paulistano Maurício Nahas foi registrar de perto rostos, mãos, olhares, desilusões e mudanças na cultura dos moradores de um lugar conhecido como “Vale da Miséria”. O resultado está no livro, na exposição fotográfica e no documentário reunidos no amplo projeto “do Pó da Terra”, que ele apresenta em bate-papo amanhã, na Casa Fiat de Cultura, como convidado do Foto em Pauta.

Reconhecido pelos editoriais de moda e ensaios publicitários, Maurício Nahas trocou a artificialidade dos estúdios pelas duras estradas de terra que serpenteiam os 51 municípios do Vale do Jequitinhonha. Na região marcada pela pobreza e por altos índices de analfabetismo, a cerâmica, hoje tratada como referência cultural de um povo invisível, foi a alternativa de sustento para as famílias que viram suas pequenas plantações sucumbirem diante a plantação indiscriminada do eucalipto, principalmente a partir de 1970.

“Eu me interessei pela cerâmica porque ela carrega uma forma de vivência, além da renda. O Vale do Jequitinhonha se firmou como uma sociedade matriarcal. Enquanto os maridos tentavam empregos no Rio ou em São Paulo, as esposas ficavam em casa cuidando dos filhos e fazendo cerâmica. Um belo dia, a cerâmica começou a render mais do que os empregos nas capitais. Aí os homens voltaram e, como não havia o que fazer num lugar tão pobre, foram cuidar da casa”, diz Nahas.

Durante 20 dias percorrendo 13 municípios do Vale do Jequitinhonha, como Santana do Araçuaí, Minas Novas, Coqueiro do Campo e Turmalina, Nahas traçou uma linha entre passado, presente e futuro da cerâmica na região, fugindo de estereótipos que esbarram apenas na admiração cultural ou na complacência rasa da pobreza.

Nos 3.300 quilômetros percorridos, ele registrou personagens como Ulisses Pereira, famoso ceramista que tem peças unitárias vendidas por nada menos do que R$ 40 mil; dona Zezinha, artesã com obras expostas na Fundação Cartier, na França; e Dona Isabel, pioneira em utilizar o barro para esculpir bonecas, tendo seu trabalho exposto na sede da ONU, em Nova York. No meio de tantas referências, Nahas também encontrou o abandono do talento no meio da poeira e o sonho frustrado de uma geração que não aceita a cultura como destino imposto.

“Durante as filmagens, acompanhamos a Daniela, filha de uma ceramista que foi para São Paulo tentar fazer medicina porque não queria seguir a profissão da família. Ela não conseguiu estudar e acabou virando babá em Carapicuíba. É um drama porque ou você fica ali e faz o que dá, já que não há trabalho, ou você se atira no mundo sem perspectiva. É um outro lado cruel da cerâmica, que também esconde talentos incríveis no meio da poeira, como a dona Nelisa, semi-analfabeta, que esculpe como ninguém, mas não tem qualquer reconhecimento como Zezinha ou Ulisses”, comenta Nahas.

No total, o fotógrafo captou a história de 12 ceramistas do Vale do Jequitinhonha, entre personalidades e anônimos. Depois de ter inaugurada uma exposição com 50 fotografias no Museu Afro Brasil, em Brasília, o próximo passo é a estreia do filme “do Pó da Terra”, com lançamento previsto para 3 de outubro nos cinemas de todo o Brasil. O roteiro é assinado por Di Moretti (“Dominguinhos” e “Tropicália”) e, segundo Nahas, a ideia do filme não é apenas retratar uma cultura, mas dar voz a quem quase nunca teve oportunidade. “Não é um filme sobre pessoas falando de cerâmica, de uma cultura bonita, de uma forma de renda. É um drama. Nós optamos por falar dos seres humanos que estão envoltos pela cultura da cerâmica, não o contrário. E isso tem dor, desilusão, opressão, não são apenas peças bonitas”, completa Nahas.

 

Agenda

O que. “Foto em Pauta” convida Maurício Narras para bate-papo sobre o projeto “do Pó da Terra”

Onde. Casa Fiat de Cultura (praça da Liberdade, 10, Funcionários)

Quando. Amanhã, às 19h30

Quanto. Entrada gratuita, sujeita à lotação do espaço – com capacidade para 200 pessoas

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