Carnaval

Família Passos faz sucesso na internet com sátiras políticas e estreia bloco

Naturais de Curitiba, eles ganharam a admiração de Felipe Neto, Zélia Duncan e Marcelo D2 com marchinhas debochadas

Por Raphael Vidigal
Publicado em 22 de fevereiro de 2020 | 03:00
 
 
normal

Passava das 11h da noite quando Isis telefonou para a mãe, Marília, com uma ideia que mudaria o destino de toda a família. Mas elas ainda não tinham consciência disso. No dia seguinte, as duas se encontraram pessoalmente, e, em cerca de meia hora, estava pronta “A Culpa É do PT”.

Era janeiro de 2019, próximo do Carnaval, e, “para brincar e ver a reação dos amigos”, Isis postou a marchinha em seu perfil no Facebook. Logo em seguida, uma de suas amigas a enviou para um grupo formado só por mulheres no WhatsApp, intitulado “Ele Não”.

A canção, recheada de ironias com frases que marcaram a última eleição presidencial, como “nossa bandeira jamais será vermelha” e “essa mamata vai acabar”, já tinha se tornado viral quando o youtuber Felipe Neto a compartilhou no Twitter. Era o estouro definitivo. “A Culpa É do PT” foi indicada e venceu o Concurso de Marchinhas da rádio CBN.

Atualmente, a música supera 2 milhões de visualizações no Facebook. “Aconteceu por acaso, sempre gostamos muito de Carnaval e somos uma família debochada, que adora contar piada. Começamos a perceber a ascensão dos discursos de ódio na internet que culminaram com o impeachment da Dilma, e, enquanto artistas, sentimos essa hostilidade, com as pessoas atacando personalidades como Chico Buarque e Paulo Freire. Isso mexeu com a gente”, informa Isis. 

Criação

A Família Passos, nome escolhido pela trupe para se batizar, convive com a música desde o berço. A matriarca Marília foi professora de português e regeu um coral infantil durante 25 anos. Atualmente, é aposentada pelo Estado. É ela a responsável pelas melodias e pelos arranjos das canções. Os seus irmãos foram cantores de rádio.

A filha Isis é funcionária pública, mas nunca deixou de estar próxima da música, já que, além da mãe, sua irmã Lígia trabalha como violinista e professora em um projeto social. O patriarca Nilson Reni foi metalúrgico até se aposentar, ao mesmo tempo em que atuava como crooner em bandas de Carnaval que tocavam nos salões de Curitiba. Hoje em dia, ele trabalha no Sindicato dos Metalúrgicos da cidade.

“Quando éramos crianças, em todos os anos a nossa mãe criava fantasias para a gente ir ver o pai tocar”, recorda Isis. “Muita gente pensa que somos cariocas pela nossa ligação com o Carnaval”, conta. Autora da maior parte das letras das músicas, Isis define a capital paranaense como “muito conservadora”. “O nosso trabalho aqui é de resistência por meio da arte”, ressalta ela. 

Reação

Quando “A Culpa É do PT” invadiu as redes, as reações foram as mais diversas possíveis. “Como foi a nossa primeira música postada, ela gerou muita confusão. A maioria entendeu a ironia, mas teve gente que não sacou”, observa Isis. No início deste ano, no entanto, eles foram vítimas de um episódio mais grave. Como todas as composições, a marchinha “Quem Deu, Deu, Quem Não Deu, Não Damares” foi colocada nas páginas do grupo, incluindo Instagram, Facebook e YouTube.

No Twitter, o vídeo recebeu um elogio da cantora Zélia Duncan. Foi o estopim para “um massacre virtual”, conta Isis. “Recebemos centenas de ameaças, de perfis que falavam de Deus e desejavam a nossa morte na mesma frase”, diz ela. Como se não bastasse, o número de denúncias orquestradas levou o vídeo a ser bloqueado e retirado do Twitter.

“Depois de mais de 60 vídeos postados, foi a primeira vez que enfrentamos esse tipo de censura”, lamenta Isis. Ela acredita que o objetivo das mensagens ofensivas, que faziam referência à aparência delas e ao acidente vascular cerebral sofrido há alguns anos por seu pai, era o de “nos amedrontar e calar”. “Mas isso é impossível, podem tentar o quanto quiserem que vamos fazer piada disso tudo”, garante Isis.

Influências

Paralelamente ao ataque, a família recebeu o apoio do rapper Marcelo D2 e viu aumentar o seu número de seguidores nas redes. No último fim de semana, eles estrearam o Bloco da Família Passos em Curitiba, onde a música mais cantada foi, justamente, “Quem Deu, Deu, Quem Não Deu, Não Damares”. “Combatemos esse governo teocrático e intolerante com humor”, sublinha Isis.

Na internet, a trupe vende CDs e camisetas. Apesar do sucesso, eles seguem com uma estrutura modesta. Os vídeos são feitos de forma caseira, e as fantasias saem dos próprios guarda-roupas. Entre as influências carnavalescas, Isis destaca Chiquinha Gonzaga e Lamartine Babo. E a família já prepara a próxima sátira autoral. O nome: “Domésticas na Disney”. 

Linha do Tempo da Marchinha Brasileira

Chiquinha Gonzaga é uma das pioneiras do Carnaval brasileiro. Em 1899, ela escreveu a primeira marchinha do país. “Ó Abre Alas” era uma homenagem ao cordão Rosa de Ouro. Em 1901, a música ganhou as ruas do Rio de Janeiro e se tornou a preferida dos foliões. A composição foi regravada por Beth Carvalho, Angela Maria, Marlene, Emilinha Borba e muitos outros.

Lamartine Babo é ainda hoje tido como o grande compositor de marchinhas do país, graças a hits como “Linda Morena”, “Grau Dez”, “Hino do Carnaval Brasileiro” e “Rasguei Minha Fantasia”, entre vários outros. Em 2017, a composição “O Teu Cabelo Não Nega” deixou de ser cantada por blocos de rua que denunciavam o caráter racista da marchinha.

Braguinha, que também atendia pela alcunha de João de Barro, foi o criador de marchinhas que alegraram gerações, como “Turma do Funil”, “Linda Loirinha”, “Yes, Nós Temos Bananas” e “Pirata da Perna de Pau”. Com Lamartine, ele compôs “Cantores do Rádio”. Em 1936, Carmen Miranda lançou a sua canção “Balancê”, que ganhou uma versão de Gal Costa em 1979.

Na década de 60, não teve para ninguém. João Roberto Kelly dominou os salões carnavalescos com músicas como “Mulata Iê Iê Iê”, “Joga a Chave, Meu Amor” e as incorrigíveis “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”, hoje revistas sob o filtro da contemporaneidade. O músico, de 81 anos, segue na ativa e, recentemente, colocou na praça a marchinha “Alô, Gilmar”.

Em BH, a retomada dos blocos de Carnaval veio acompanhada pela ascensão da visibilidade feminina na festa. Jhê foi a primeira mulher a se tornar bicampeã do Concurso de Marchinhas Mestre Jonas. Aline Calixto comanda há sete anos o seu próprio bloco. Brisa Marques compôs o hit “Funk de Beauvoir”. Deh Mussulini e Irene Bertachini são autoras de “Mátria Amada”.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!